Qualquer aventureiro experiente sabe que o mundo dos sonhos em Thystium guarda perigos tão imediatos quanto o mundo desperto. Um sonho pode facilmente causar sérias lesões físicas e até mesmo a morte de indivíduos despreparados. Flayfh não era nem de longe o que podia se chamar de despreparada.

Abriu os olhos em um local que conheceu de imediato. Estivera ali anos atrás. As construções biotecnomágicas eram características marcantes dos territórios dominados por Nyax. Torres pulsantes, casebres de metal com veias onde magia fluía, paragens recobertas pela substância escura e viscosa que gotejava das mandíbulas dos homens-rato.

– Flayfh... –disse a voz sibilante. – Nossos últimos encontros não foram dos mais agradáveis.

Mesmo esforçando-se ao máximo, a clériga não conseguia encontrar um ponto de origem para aquela voz. De certo que conhecia o interlocutor, mas parecia não conseguir se lembrar quem era.

– Os modos de meu agente em seu mundo tendem a ser espalhafatosos, porém peço que entenda. – continuou a voz misteriosa. – Não podemos dispor de energia o suficiente para enviarmos os maiores entre os meus para Thystium, a menos que a espada seja utilizada corretamente.

– Eu ouvi da primeira vez que conversamos, eu era jovem e faz mais de dez anos. Lembro claramente quantos morreram por causa dessa maldita espada, quantos sofreram e lutaram para impedir que vocês cravassem suas garras sobre nós.

- Não nos julgue mal. – respondeu a criatura que revelava vislumbres de sua forma. Imenso, redondo e repleto de membros superiores no formato de tentáculos protuberantes e pontiagudos. – Meu mundo está condenado, nossas estrelas não brilham mais nos céus. Eu só desejo dar aos meus a chance de continuarem existindo. Não vê? Eu amo a vida!

A clériga levou sua mão esquerda até o pingente prateado e dez pontas que trazia em seu pescoço, pressionou com força e mentalizou suas preces ao Povo das Estrelas. O pensamento teimava em permanecer naquela região, sem ascender às estrelas, como se sufocado pela corrupção do local, como se acorrentado ao chão por grilhões invisíveis.

Em meio a sua concentração para desvencilhar-se daquele local, Flayfh sentiu um leve toque sobre seus ombros, pressionando em uma massagem relaxante, desfazendo a tensão e permitindo que seu pensamento flutuasse para longe dali. Nos rápidos instantes em que se separavam seu despertar e o sono profundo em que encontrava-se, a clériga teve a sensação de ter visto seu tio às suas costas, rejuvenescido e disposto, a amparando para sair daquela situação com um olhar satisfeito e orgulhoso.

**

Gavril a sacudia pelos braços e chamava seu nome. Vez por outra recostava a clériga no chão e atacava os nyax que aproximavam-se demais utilizando movimentos rápidos com sua espada leve e rápida. As criaturas surgiram dos céus, em um portal que se abriu e fechou rapidamente, despejando cerca de cinquenta dos diminutos oponentes.

A espada gritava ensandecida nas mãos de um dos guerreiros da comitiva anã. Os Nyax não o atacavam, mas avançavam com ferocidade sobre todos os outros. Suas garras e presas dilaceravam a carne dos adversários, destroçando armaduras e vencendo defesas com velocidade aliada à sua invisibilidade.Contavam com esta habilidade para chegar perto o bastante dos adversários e então atacavam de maneira brutal.

– Faça com que ela cheire isso. – disse Udur, o clérigo cheio de atitude com sua voz grossa. – É uma erva que a fará despertar, utilizamos para manter nossos guerreiros despertos.

O espadachim aceitou com certa relutância, contudo sentiu uma ponta de alívio ao perceber que o clérigo enfrentava as criaturas que estavam mais próximas de Flayfh. Bradava palavras simbólicas e sacras, para em seguida desferir pesados golpes com seu martelo de batalha, esmagando aos Nyax com tanta facilidade quanto Gavril os desmembrava. Udur erguia sua arma com facilidade e elegância, possuía uma técnica apurada de batalha, algo que Gavril ainda não tinha visto.

Após sentir o cheiro das ervas entregues pelo anão, a clériga despertou. Assustada, buscou ar apressada e se apoiou em Gavril, tentando se levantar. Ainda estava zonza, mas pode perceber a bagunça em que se encontravam. Inimigos por toda parte, alguns anões jaziam mortos e um dos anões que ainda estava de pé trazia a espada gritadora em suas mãos, emitindo as terríveis ondas sonoras que rasgavam os ouvidos de quem era exposto à elas.

Mas em sua experiência, Flayfh sabia que nada é tão ruim que não possa piorar. E estava por acontecer naquele instante.

Trazido por ventos mágicos escuros e pesados, o Feiticeiro Azulado manifestou-se no local. Do alto dos seus três metros de altura, o adversário era intimidador. Trajava um manto longo que cobria toda a extensão de seu corpo e que se movia por vontade própria, em sua cintura trazia uma imensa cimitarra com o cabo feito de ossos. Seus imensos olhos vítreos pousaram diretamente em Gavril e o feiticeiro o reconheceu de imediato e sorriu com sua arcada dentária repleta de caninos.

Percebendo a chegada do inimigo, Gavril deixou os dois clérigos de lado e começou uma corrida em direção ao recém-chegado, tendo seu caminho obstruído por Udur, que deteve o espadachim posicionando seu martelo de batalha na altura do peito do guerreiro de olhos dourados.

– Não é a hora. – disse o clérigo. – Preciso que tire Flayfh daqui. Ela é a chave para determos esses inimigos de uma vez. Você talvez não perceba isso, mas ela é realmente tocada pelos deuses. Os líderes destes homens-rato a temem de alguma forma. Fui avisado disso horas atrás.

Gavril não desviara os olhos do Feiticeiro Azulado, careca e de olhos vermelhos que agora estava ao lado do anão que empunhava a espada curta e maldita. Com os dentes cerrados, o espadachim apertava o cabo de sua espada com força o bastante para ferir sua própria mão.

– Ele não vai escapar mais uma vez. – disse o espadachim. – De novo não.

– Está subestimando as capacidades de Kinnish. Ele é um dos maiores guerreiros de Gamilsin. – retrucou Udur com uma calma comum àqueles acostumados a liderar. – Não temos muito tempo. Os deuses se comunicaram comigo e mostraram o caminho. Um templo no extremo Sul, próximo ao vulcão do Fim do Mundo. Somente lá ela terá o que precisa para deter os invasores.

O sacerdote não conseguia tirar de sua mente as palavras dos deuses sobre caminhos onde somente Flayfh poderia andar. Em suas preces foi avisado. Nada acontecia por acaso, Udur era fiel à vontade dos Dez que São Um e não iria questionar. Para vencer esta batalha, precisariam dos conhecimentos e habilidades da clériga.

– Mas e quanto a vocês? – perguntou Gavril.

– Você deseja detê-los, os deuses desejam que os detenha. Vá enquanto há tempo, vou criar a brecha para que saiam daqui. – Udur falava e continuava atacando com seu martelo.

O espadachim avaliou toda a situação por alguns instantes. Não havia outro jeito, não poderia lutar e proteger Flayfh debilitada. Embainhou sua espada, pegou Flayfh em seus braços e dirigiu-se ao anão antes de alçar voo. A clériga já havia salvado sua vida dias antes, era hora de retribuir.

– E quanto à espada? – perguntou o espadachim antes de deixar o local.

– Garantirei pessoalmente que ela retorne às suas mãos. – respondeu Udur. – Não desejo um item carregado de morte e corrupção em Gamilsin.

– Obrigado, Udur. Você honra o nome de sua raça.

Gavril saltou deixando uma onda de vento azulado para trás. Partiu em grande velocidade, a maior que já empreendera, rumo ao Sul. Voaria até o limite de suas forças para o mais longe dali quanto fosse possível. Não tinha outra escolha a não ser confiar nas palavras dos anões. Em seu íntimo, sentia toda a frustração de fugir diante do Feiticeiro Azulado mais uma vez e torcia para que aqueles anões fossem tão bons de briga quanto se intitulavam.

O vento cortava seu rosto, mas Gavril continuou acelerando até o limite de suas forças.

Espada e Dever  - Um livro no Mundo de ThystiumWhere stories live. Discover now