XXII

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O grupo seguiu em silêncio após o confronto com os trolls e por grande parte do caminho. Constantemente checavam se a Espada Gritadora permanecia inviolada e mantinham a atenção buscando pela presença de possíveis Nyax, escondidos por sua característica invisibilidade, pesava ainda estarem preocupados com a possível investida de inimigos, com o retorno do Feiticeiro Azulado ou com a possibilidade de se perderem em uma região desconhecida como o Sul. 

Os poucos momentos de conversa, durante paradas para descansar ou se alimentar, eram utilizados para planejamento do dia seguinte. Flayfh, vez por outra, contava histórias sobre o vilarejo de Pomena e como sentia saudade das amenidades do local, dos problemas simples que afligiam aos camponeses, das preocupações com a colheita ou com o trato dos porcos falantes.

Gavril se lembrava da academia com carinho, mas não imaginava seu destino por lá. Desejava um canto para chamar de seu após anos de viagens e batalhas, uma fazenda onde pudesse plantar e criar seus próprios animais falantes. Ter seu filho com uma esposa que fosse forte e simplesmente se assentar. Evitava partilhar suas intenções, afinal era reservado. Mas nem de longe tão reservado quanto Udur, o clérigo simplesmente não falava sobre sua vida nas Montanhas Gêmeas, muito menos comentava sobre seu posto na hierarquia dos clérigos.

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As proximidades da cratera que marcavam o destino do trio no extremo Sul de Thystium, eram recobertas por uma névoa densa e que dificultava a visão. O chão apresentava uma superfície esponjosa, mas pela espessura da névoa cinzenta que batia na cintura de Udur e nos joelhos dos dois humanos, era impossível enxergar o motivo para tal. Apesar de o lugar ser carregado de mistérios e histórias sombrias, o trio caminhava sem nenhum problema. O que era de se estranhar, Gavril ouvira histórias terríveis sobre o temido Sul e não havia encontrado nada que justificasse.

Flayfh era a mais atenta ao redor. Talvez por ser ela quem carregasse a espada amaldiçoada entre seus pertences, sentia-se mais visada pelos inimigos. Talvez fosse apenas o medo, inerente à natureza humana ante uma situação desconhecida. Tanto ela como Udur conheciam orações específicas para afastar todo e qualquer medo, fosse ele mundano ou sobrenatural, contudo nenhuma delas parecia funcionar ali, enquanto desciam aquela cratera imersa em silêncio sepulcral.

– Udur, se vocês anões são tão reclusos... Como você sabia exatamente como chegar até aqui? – perguntou Gavril levemente exasperado, quebrando o silêncio. – Digo, você apareceu do nada, nos ajudou e continua nos guiando.

– O que você pretende dizer com isso, humano? – gritou de volta o anão também se exaltando. – Que eu não sou confiável? É isso? Se for, diga na minha cara.

– Tenho meus motivos para desconfiar. – respondeu o guerreiro. – Nunca conheci nenhum anão, vocês estavam em uma missão desconhecida e agora estamos colocando nossos destinos em suas mãos, no caminho que você escolheu.

– É porque se você fosse o guerreiro que todo mundo diz que você é, teria acabado com isso de uma vez lá no passado. – gritou Udur. – Não precisaria ter me encontrado, não colocaria a vida de ninguém em risco, meus amigos não teriam morrido e Flayfh não estaria amaldiçoada!

– Como é? – perguntou o espadachim entre os dentes, quase com um rosnado e com veias saltando de seu rosto e pescoço.

Gavril sacou sua espada com um movimento rápido como um piscar de olhos e saltou em direção ao clérigo, que se defendeu utilizando os braceletes de metal que trazia por baixo das mangas. Por um triz não teve seu braço cortado. Udur se desvencilhou do segundo ataque e sacou seu martelo, posicionando-se para a luta.

Flayfh se intrometeu no meio dos dois, abrindo os braços e mantendo os dois enraivecidos companheiros de viagem longe do alcance das armas um do outro. A clériga percebeu que estava no caminho dos golpes e ambos e só ali notou como foi perigoso o curso de ação que tomara. A lâmina de Gavril estava rente ao seu pescoço e um filete de sangue já escorria de sua pele exposta.

– Seus idiotas! – gritou ela. – Vocês não sabem nada sobre isso mesmo, a espada está instigando vocês a isso. Eu já vivi isso antes e não foi nada agradável, vi muitos membros do grupo que viajava comigo morrerem por causa das sugestões desta maldita lâmina.

Os dois ainda se encaravam, sem deixar de lado suas armas. Não conseguiam pensar com a clareza de raciocínio necessária para concluir que não estavam sentindo nada daquilo por vontade própria. Os pensamentos de ambos era um borrão de difícil discernimento, o que complicava ainda mais as coisas.

– Caso desejem mesmo se matar, me avisem. Eu posso acelerar o processo e esmagar o crânio de vocês com a minha maça! – ela continuou, sem dar espaço para que os dois se aproximassem.

O espadachim embainhou sua arma e fechou os olhos, baixando a cabeça e sacudindo-a para os dois lados, buscando desanuviar a mente. Deu um tapa em seu próprio rosto para voltar a si, como quem desperta de um sonho ruim. Udur permaneceu de arma em riste, mas seu olhar distante e respiração espaçada denotavam que estava absorto em pensamentos.

– Eu não ouvi nada, mas senti muita vontade de provocar ao Udur. –disse ele. – Não sei o que foi isso, mas não foi nada agradável.

– A espada está embainhada, como ela pode fazer isso? – perguntou o clérigo, retomando a calma.

– Nunca entendi o bastante de magia para explicar como ela funciona, só sei que ela pode fazer isso. – respondeu ela. – Tivemos sorte, já que ela demorou a se manifestar. Acho que estamos saindo muito do caminho que a espada considera aceitável. O que é bom.

Udur estendeu a mão direita para o espadachim e o encarou nos olhos.

– Perdão, Gavril. Não faço mal juízo de você, acho o contrário disso.

– Eu muito menos. Acreditei em você quando não te conhecia. – Gavril devolveu o aperto de mão. – Acredito ainda mais hoje.

– Mas de uma coisa você está certo. – disse Udur. – Meu caminho não é aqui, por isso, quando acabarmos essa viagem, irei retornar às minhas terras para cumprir com minhas obrigações que não são poucas.

Seguindo seu instinto, que a clériga confundia muitas vezes com a intuição dos deuses soprando em seus ouvidos, Flayfh entregou o broche de safira para Gavril. Era um presente da xamã do clã Hehim. Os elfos nunca presenteavam sem motivos. Sem perguntas o Espadachim aceitou o objeto e o prendeu na parte interna de sua vestimenta, próximo do ombro.

O grupo manteve-se em silêncio pelos dois dias seguintes. Conversavam apenas o básico e evitavam qualquer alteração no tom de voz. No local onde se encontravam, a parte mais profunda da cratera, a névoa era ainda mais espessa. Mas a sensação era diferente. Os três sentiam como se cada um de seus passos fossem vigiados, havia algo ali os observando ao longe sem tomar nenhum curso de ação visível. As narinas dos três eram invadidas por uma mistura de cheiros de brasa e sangue.

O Sul ainda não havia apresentado todos os seus perigos.

Espada e Dever  - Um livro no Mundo de ThystiumWhere stories live. Discover now