XXV

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– Gavril não voltou e as criaturas pararam de avançar. – Udur mantinha os olhos focados onde a batalha se desenrolava. – É a nossa hora, Flayfh.

A clériga encarava a escuridão com ansiedade. O globo de luz conjurado pelo anão não permitia enxergar o que se passava com o espadachim. A sensação de angústia e impotência paralisava os movimentos de Flayfh, que não sabia se Udur era capaz de enxergar o que se passava algumas centenas de metros adiante.

– Não podemos deixar ele para trás. – disse ela mordendo os lábios e massageando as próprias têmporas.. – Viemos juntos, vamos voltar juntos. Não aguento mais perder ninguém e continuar viva.

Udur caminhou até ela e a segurou firme, após prender seu martelo ao suporte que trazia nas costas.

– Temos uma missão. – disse ele. – Não entende isso? Ele entendia. Vamos tornar sua ação útil e realizar ao que nos propomos.

– E deixá-lo morrer nas mãos de um mago capaz de conjurar criaturas com a facilidade com que eu quebro ovos? – perguntou ela.

– Estamos falando do Gavril. Você o viu lutar contra centenas de caras de rato de uma só vez e sobreviver. Duvido que exista algo capaz de matá-lo com facilidade. Vamos focar na missão – Udur disse as últimas palavras uma de cada vez.

Flayfh assentiu com um suspiro e os dois correram em direção ao Sabri mais próximo. O que significava quase um quilômetro.

– Esses são os Sabri? – perguntou Flayfh. – Eles são humanos demais, não tem nada que os diferencie.Sempre imaginei que fossem diferentes... Pelas histórias que ouvi sobre a tal Sidh.

– Os nossos olhos não são capazes de enxergá-los como realmente são. – explicou Udur, correndo o olhar pela imensidão de corpos aprisionados. – Os registros de meu povo contam o quão aterradoras essas criaturas podem ser.

Os corpos das criaturas estavam suspensos por correntes e recobriam a parede da estrutura metálica por vários andares. O local era construído de forma que os andares superiores e inferiores só podiam ser atingidos através de voo.

Uma onda de frio emanava do corpo e os dois clérigos notavam o vapor quente saindo de suas próprias bocas. A temperatura despencou ao se aproximarem do Sabri. A criatura tinha os seus membros acorrentados, braços e pernas esticados ao máximo, e vestiam apenas uma tanga. Não importava se fossem machos ou fêmea. Todos eram portadores de uma beleza estonteante, que seria digna dos mais impressionantes contos narrados por bardos, caso tivessem vivido na mesma época.

Os servos do Povo das estrelas aproximaram do corpo inerte e notaram os detalhes da arma ao qual vieram buscar. A estaca pulsava, cravada no peito de cada um dos devoradores de magia. Mesmo após todos os séculos de uso, a peça de madeira permanecia igual, inalterada e as pulsações davam a impressão de que o objeto possuía vida própria.

– Eu não conheço o bastante destes monstros para fazer um julgamento apropriado. – disse Flayfh. – Temos um inimigo terrível à solta por aí e para TENTAR detê-lo vamos liberar outro tão terrível quanto.

– Tudo o que passa pela minha cabeça no momento é deter esse Feiticeiro e depois pedir ajuda ao Templo de Enlil para que detenhamos o que vamos despertar aqui. Infelizmente não é hora para certezas, mas sim de fazer o que temos à mão. Os Deuses sabem que a ameaça que o feiticeiro azulado pode desencadear é capaz de destruir Thystium inteiro, é nisso que eu acredito.

A clériga tentava evitar, mas acabava por deixar que seu medo falasse mais alto. Não sabia o quanto o Feiticeiro havia avançado em seus objetivos, mas também não desejava ver os poderes de um inimigo que forçou os dragões a trabalharem em conjunto.

Ela então se encheu de coragem e mentalmente contou de um até três, agarrando a estaca no final da contagem e puxando com toda sua força. O objeto não só se manteve no mesmo local, como a clériga foi arremessada a diversos metros de distância. Batendo a cabeça contra o chão mais de quatro vezes até finalmente parar.

Udur correu até ela e a ajudou a levantar. Flayfh estava pálida e tinha ferimentos que deixavam as mãos em carne viva, mesmo utilizando luvas. A clériga apoiou-se nos joelhos e ficou de pé novamente, avaliando o estrago que ainda fumegava.

– Eu senti minha vida escapando do corpo, Udur. – disse ela. – A estaca estava sugando minha vida.

– Como foi que eu não imaginei isso? – disse o clérigo com um leve sorriso no canto da boca.

O anão começou a retirar seus braceletes e os jogou no chão junto ao seu pesado martelo de batalha. De dentro de sua camisa retirou um pergaminho, guardado com zelo mesmo diante de uma longa viagem, repleta de batalhas.

– Flayfh, eu jamais pediria isso. – começou ele, embargando a voz. – Mas as circunstâncias exigem. Quando cumprirem essa missão, peço que entregue esse pergaminho ao templo de Enlil, no interior das Montanhas Gêmeas. O profeta Bazal é testemunha de quão difícil para mim é tomar essa decisão... Mas confiei em vocês, estou seguindo a vontade das Estrelas. – o clérigo disse as últimas palavras mais para si mesmo do que para Flayfh.

– O que está dizendo, Udur? – disse ela. – Não comece com uma conversa de despedida. Ninguém vai morrer aqui hoje.Vamos voltar juntos!

O anão não disse mais nada e correu em direção ao Sabri mais próximo. A clériga tentou levantar e impedi-lo, mas tivera suas forças drenadas e não conseguira ao menos continuar de pé, acabou caindo sentada.

– Udur! – gritava ela. – Udur, pare!

O clérigo agarrou a estaca com toda a força de suas mãos. Quando mais novo, antes de servir ao majestoso templo das estrelas em Gamilsin, Udur trabalhara nas minas de sua família. Minerando, escavando e enfrentando os monstros que vez por outra tentavam se alimentar dos anões. Tinha mãos e braços fortes e um corpo resistente até mesmo para o padrão de sua raça. Contraindo todos os músculos do corpo e firmando sua mente na conexão com os Dez que São Um, Udur apoiou os pés na parede e a utilizou como apoio para obter mais força. Sentia cada gota de vida escapar por seus dedos, sugada pela arma pulsante em suas mãos.

Quando a estaca começou a se mover a criatura abriu os olhos. Vívidos, inquiridores, carregados de um sadismo ansioso e repletos de ódio. Correram por todo o ambiente antes de fixarem diretamente em Udur.

[Você não possui força o bastante.] – disse a voz que ecoava na mente do anão. [Posso sentir sua vida chegando ao fim].

Ignorando o que ouvia Udur continuou se esforçando ao limite. Flayfh finalmente conseguiu alcançá-lo e levou um baque ao perceber a criatura de olhos abertos.

[Sou um ser da magia, assim como os deuses a quem vocês dois cultuam]. – disse a voz, falando à mente dos dois clérigos. – [Usem as minhas forças restantes, esse corpo não me servirá mais.]

– Não dê ouvidos a ele, Udur. – disse Flayfh. – Ele não está do nosso lado.

Faltava pouco para a estaca deixar completamente o corpo do Sabri, faltava menos ainda para Udur tombar morto.

Percebendo o fim da vida de seu companheiro se aproximando, Flayfh o abraçou com toda sua fé. Rogava aos Dez que São Um que permitissem que ela trocasse suas forças vitais com o anão, que o mantivesse vivo e assim conseguiu doar o bastante para permitir Udur retirasse completamente a estaca, fato seguido de um clarão e um estouro trovejante que ecoou por toda a estrutura do local.

Espada e Dever  - Um livro no Mundo de ThystiumWhere stories live. Discover now