Capítulo 2

526 42 11
                                    

Kan era uma vila pequena, familiar, religiosa e Onji tinha sonhos grandiosos, interesse nenhum em formar uma família e não acreditava em nada que não estivesse à sua frente. Mas o que mais lhe incomodava – a rixa dos humanos com qualquer nobre que pisasse dentro dos muros de Kan – era algo do qual não podia fugir. Fosse ali ou em qualquer lugar, as pessoas estariam brigando umas com as outras.

O que Onji mais gostava em Kan, porém, era como tudo estava sempre calmo e silencioso. Ali não tinha estradas e ninguém por lá tinha um carro. Ninguém ouvia música alta de madrugada e as lojas não gritavam com microfones pra chamar atenção de ninguém. Era uma vila isolada do tempo como tantas outras no reino, com casas simples, ruas de pedras e barro, numa paisagem bucólica.

Por ficar entre o reino de Nova Índigo e o império de Hao-Mou, o grande hotel na praça central de Kan recebia muitos turistas, inclusive das várias espécies nobres, mas um guerreiro-do-fogo passando vários dias por ali chamava atenção. Eles eram muito mais parecidos com humanos do que dos nereus, com suas escamas e nadadeiras ou das raças do povo da floresta, com suas partes do corpo de animais e plantas. Para a maioria dos humanos que viviam ali, entretanto, não era a aparência dos nobres o problema, mas os muitos e muitos anos de total exclusão de humanos das principais cidades e instituições de Nova-Índigo, onde apenas nobres eram permitidos.

Aquela realidade vinha mudando nos últimos cinquenta anos graças a grupos de resistência e ativistas que conseguiam, aos poucos, influenciar o governo, mas Onji sabia que ainda levaria muito tempo até que todos pudessem viver juntos em paz.

Os Dragões começaram como um grupo em prol dos direitos dos humanos no reino, para que pudessem frequentar as mesmas escolas, os mesmos espaços, salários dignos. E conseguiram conquistar muitas coisas, mas, as ações de Jia Li, uma radical e a última líder antes do grupo desaparecer, mudou completamente a história de Nova Índigo.

O monge Upali sabia bem que Onji era uma pacifista. Enojava-se de Jia Li pelas escolhas violentas que fez enquanto líder dos Dragões e por todas as coisas horríveis que a mãe biológica havia feito. Talvez por isso ela se empenhava em ser tudo que Jia Li não era.

Estava atravessando a ponte perto do Templo da Fênix quando viu a irmã, Keira, agachada como um gato, encarando o riacho.

Ela era adotada, assim como Onji e Yuenu, a mais velha, e era a mais diferente das três irmãs. Era uma raposa, afinal, que podia se transformar em humana. Era a única nobre que os pais aceitavam. Dao e Nanai, como a maioria dos humanos em Kan, eram intolerantes.

A garota de onze anos tinha a pele pálida e os cabelos muito cacheados, da cor da lua; os olhos, bem pretos. Quando não parecia uma raposa, suas orelhas felpudas estavam sempre despontando dos cabelos macios, com a cauda balançando às costas.

— Kiki, se você estiver pescando as carpas de novo eu juro pra ti que você vai fazer o almoço por seis meses.

As orelhas da garota sacudiram, impacientes e ela tirou os olhos do peixe que acompanhava perto da margem.

— Kiki é a sua vó e eu preciso de carne.

Onji suspirou.

— Eu compro pra você e fazemos mais tarde.

— Mas você tem nojo.

— Não vai cair minha mão se eu preparar um bife pra ti. Mas você precisa parar de matar os animais da vila, pensa no escândalo que isso pode virar.

Keira se levantou, passou a mão pelos cabelos e chutou uma pedra para dentro da água. Ela se esforçava, mas Onji sabia que não era fácil reprimir a própria identidade. Simpatizando com a frustração da irmã, foi até ela e colocou a mão em seu ombro.

O Dragão e a FênixOnde as histórias ganham vida. Descobre agora