Capítulo 10

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Desceram um curto trecho de morro ladeado por árvores e logo chegaram na planície que tomava boa parte do território do reino. A estrada contornava algumas formações rochosas no caminho, formando uma linha sinuosa marrom em meio a imensidão de chão verde. Tirando as poucas variações na paisagem, o resto era um gigantesco campo plano. Não muito longe, podia ver a mata onde moravam os habitantes de uma tribo do povo da floresta – dríades, faunos e sílfides – e o rio que cortava o terreno desde sua nascente, longe dali.

Keira, em sua forma de raposa, saiu correndo a frente, em disparada. Ela parava para explorar os arredores e quando a caravana a alcançava, ela voltava a correr.

Onji nunca se cansava do cenário a se perder de vista, e em viagens longas como aquela, a paisagem costumava oferecer uma boa distração para enganar a passagem do tempo. Ficou boa parte do dia conversando com Shen. Havia um terceiro guarda, que andava à frente da caravana e que não parecia ser do tipo que se misturava.

A primeira parada foi em uma trilha ladeada por uma porção de pequenas cascatas formadas pelo Rio Índigo, de onde o reino tirava seu nome. Passaram algumas horas no local no fim da tarde, enquanto os passageiros tiravam a poeira das escamas relaxando nas banheiras naturais que o rio formava.

Passaram a noite em uma estalagem na beira da estrada, perto de um ponto de parada do trem. O máximo de ação que aconteceu no dia foi Keira, batendo boca com o dono do estabelecimento por ignorar a presença de Onji e Shen, os dois únicos humanos no local.

Onji conseguiu acalmar a irmã, mas sem deixar de xingar o homem com uma série de seus palavrões preferidos na língua de Hao-Mou.

No quarto, Keira não parava de bufar de raiva contida.

— Eu tinha mais um monte de coisa pra falar praquele otário – ela reclamou.

— Que não iriam mudar em nada a opinião dele.

— Jia Li mudou a opinião de um monte de gente.

— Jia Li não mudou a opinião de ninguém. Só aterrorizou o mundo e meteu tanto medo nas pessoas que elas decidiram fingir que concordavam. Se eu te ver apoiando as ideias dela de novo eu vou te dar um belo de um tapa.

— Metade das pessoas em Kan acham ela uma heroína.

— Ela foi uma assassina, isso que ela foi. As pessoas em Kan são tudo fanáticas e isoladas do resto do mundo. Jia Li acreditava nas coisas certas e queria um mundo justo pra nobres e humanos. Mas não são as opiniões dela que importam, mas a forma que ela escolheu pra lutar por isso. Cerúlea não abriu as portas pra humanos por ter um coração enorme e que desejava igualdade a todos. Foi porque tinha medo. Toda vez que uma criança humana morria na comunidade de Qualaram por crime de preconceito, Jia Li mandava matar o filho de algum político. Ao invés de fazer igual em Qualaram, onde abriram guerra contra a gangue dela e todo humano que ousava achar que tinha direitos, Cerúlea liberou acesso para humanos. Mais de duzentas pessoas morreram no tempo que ela foi líder dos Dragões. E não só nobres, mas humanos também. Agora imagina se ela tivesse usado a força dela pra se comunicar ao invés de tacar bombas, onde ela teria chegado? Acabou morrendo com a cabeça cortada.

— Tá, não precisa me dar um sermão.

— Preciso sim.

Onji sentou-se na cama e removeu as botas, aborrecida. Aquele assunto a tirava do sério toda vez. Massageou os pés cansados e se forçou a tirar aquilo da cabeça. Queria que houvesse uma forma de deletar de sua memória que era filha daquela mulher, mas se passariam muitos e muitos anos até que as pessoas a sua volta parassem de citar o nome dela o tempo todo. Tudo que ela havia feito ainda era muito recente na história de Nova Índigo.

O Dragão e a FênixOnde as histórias ganham vida. Descobre agora