QUARENTA

2K 248 119
                                    


Alienígenas rondaram por aqui!

A placa de latão com garranchos entalhados por um objeto pontiagudo me traz uma onda intensa de nostalgia. Acaricio a textura rugosa da superfície como se fosse um animalzinho de estimação. O objeto inanimado que tem sido motivo de piada entre muitos moradores da região, me desperta uma sensação de gratidão inexplicável. Afinal, é o marco do meu recomeço.

— A vacinação antitetânica está em dia?

Olho para Thalles com a testa franzida, já que ele está do lado do sol. Sua silhueta brilha como se possuísse poderes vampirescos.

— Não estraga meu momento — protesto.

O terreno a frente parece ainda mais esburacado do que me lembro. A casinha de madeira, no entanto, está com uma tinta azul fresca. A fumaça subindo do cômodo onde fica o fogão a lenha dá um toque fantástico a cena. Assim que nos aproximamos, somos recepcionados pelos cachorros da Dona Clementina, que latem como se cumprissem uma obrigação diária. Não demora para que a senhorinha apareça para nos atender, usando a combinação típica de lenço na cabeça, vestido estampado e botas de borracha.

— Vocês voltaram — ela diz com reconhecimento, abrindo um sorriso de prótese com ocasionais dentes de ouro. Olhar para ela me deixa com o coração aquecido e emocionada ao ponto de sentir vontade de chorar.

Ela nos convida a entrar, nos guiando até a cozinha onde Thalles e eu tivemos um momento de tensão semanas atrás. O aroma de café continua impregnado no ar, me deixando com água na boca.

— Vocês voltaram a namorar? — Dona Clementina pergunta enquanto pega as xícaras de porcelana do armário. — Não estão mais emburrados um com o outro.

Thalles e eu trocamos olhares cúmplices. Não tivemos tempo de conversar sobre a nossa relação ainda para colocar rótulos, mas não é algo que se fez necessário. Depois que nosso relacionamento evoluiu, a conexão que costumávamos ter voltou com mais força. Temos total consciência do que sentimos um pelo outro.

— Nos acertamos — respondo, encostando os dedos propositalmente na mão de Thalles. Dona Clementina não faz ideia o quanto ela contribuiu para que isso acontecesse. Se não fosse pela suposta aparição alienígena, talvez eu estivesse agora na capital, questionando meus propósitos.

Depois que meu pai e eu decidimos ficar na cidade, corri atrás de Thalles no hospital e fiz toda uma cena vergonhosa me jogando em seus braços na frente de algumas enfermeiras. Mesmo assim, voltamos para a capital logo em seguida, para organizarmos nossas coisas e podermos oficialmente voltar a morar no litoral. Dois dias foram suficientes e, hoje pela manhã, chegamos de mala e cuia para nos instalarmos na nossa antiga moradia.

A segunda coisa que fiz depois de reencontrar Thalles (a primeira entra em uma questão um pouco melodramática), foi convocá-lo para uma visita a Dona Clementina.

Assim que recebemos cada um uma xícara fumegante de café, pergunto com curiosidade genuína:

— A senhora viu mais alguma coisa suspeita?

Os olhinhos amendoados da velhinha brilham.

— Desde que meu filho voltou a morar comigo, não vi mais nada. Acho que os alienígenas se assustaram com a presença dele.

Abro um sorriso tão grande que minhas bochechas doem. A sensação é de que um peso foi tirado das minhas costas.

Depois de algumas xícaras de café e conversas aleatórias sobre a vida, Thalles e eu nos despedimos de Dona Clementina, com a promessa de que voltaremos para visitá-la ocasionalmente. Ao passarmos novamente pela placa da entrada da propriedade, verbalizo um pensamento insistente:

— Será que um dia saberemos a verdade?

Thalles pressiona os lábios em uma expressão pensativa.

— Bom, eu ainda não sei se devo confiar que você não é um alien substituindo minha melhor amiga.

— Eu digo o mesmo! — reclamo, empurrando seu corpo com o meu.

Entramos na camionete de Thalles rindo o suficiente para que lágrimas brotem na lateral dos nossos olhos. Com todas as janelas escancaradas, cantamos as músicas que tocam na programação vespertina da rádio local, enquanto Thalles dirige de volta. É como se o mundo todo estivesse naquele espaço e nada mais importasse.

Quando adentramos as vias asfaltadas, Thalles diminui o volume do som e me olha de soslaio. Ele está especialmente bonito hoje: sorrindo como o garoto que eu conheci anos atrás.

— O que acontece agora?

— É uma pergunta mais no sentido existencial ou do calor do momento?

Ele tamborila os dedos no volante.

— Pode ser em todos os sentidos?

Coloco a mão direita para fora da janela, sentindo o vento na ponta dos dedos.

— Não tenho pensado muito nos próximos passos a longo prazo, mas sinto que minha vida está entrando nos trilhos novamente — respondo com sinceridade.

Observo Thalles encarar rapidamente o adesivo da atlética de direito colado no painel e apertar o volante deixando os nós dos dedos mais pálidos que o normal.

— Também sinto isso.

Estico o braço para dedilhar sua nuca, num gesto que diz que estou com ele para o que der e vier.

— Mas eu sei de uma coisa que pode acontecer agora — cantarolo.

Thalles me olha desconfiado, os lábios repuxados em um sorriso contido.

— Ah é?

Instruo que ele pegue a Avenida Beira-Mar e, quando nos aproximamos do destino que tenho em mente, peço que pare. Deixamos nossos sapatos no carro e corremos para a areia. Puxo Thalles com insistência na direção que me chama como um ímã: a queda da mariposa.

— Você não está pensando mesmo nisso, está? — Thalles pergunta ao notar minha intenção. Eu só gargalho em resposta.

Subimos a queda da mariposa pela trilha de pedras, pisando em gravetos que machucam nossos pés descalços. O caminho é estreito e cercado de vegetação. Em momento algum soltamos a mão um do outro, como se fosse impossível desfazer o contato físico.

— Eu sempre vou amar esse lugar — Thalles sussurra quando chegamos ao topo, entorpecido pela beleza da vista ampla do céu e do mar.

Sou tomada por mais uma onda de memórias, de quando criei coragem para saltar pela primeira vez anos atrás. Apesar de grande parte da motivação ser a necessidade de me provar como parte do grupo, uma parcela se dava pela curiosidade de uma nova sensação.

— Vamos saltar — digo com convicção.

Thalles me encara com as sobrancelhas levantadas, mas acaba concordando com a cabeça.

Nos aproximamos do precipício e observamos a água lá embaixo, esperando para nos acolher. Meu estômago se contorce numa mistura de medo e expectativa.

— Juntos? — Thalles pergunta.

Aperto sua mão em resposta.

Poucos segundos depois, nos jogamos num impulso recíproco para o mar.

~~~

Leia o capítulo de agradecimentos... <3

Você Acredita em Humanos?Onde as histórias ganham vida. Descobre agora