TRÊS

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Como prometido, saio do meu quarto para jantar em família. Minha mãe não é uma ótima cozinheira, possui um escasso repertório de receitas e adora enlatados, mas quando a ocasião é especial ela faz uma lasanha muito saborosa. Assim, quando vejo que está tirando a massa do forno, busco rapidamente em mente se esqueci do aniversário de alguém.

― Edite vem jantar em casa ― diz, como se lesse meus pensamentos. Percebo a empolgação genuína em seus olhos verdes, ela gosta muito de vovó, assim como todo o resto que a conhece. Às vezes acho que só se casou com meu pai, porque se apegou a sogra. Afinal, é inconcebível a ideia que um ser tão incrível quanto vovó tenha dado à luz a um brutamontes como meu pai.

― Ela vai contar a história dos unicórnios, mamãe? ― Cat diz, sentada a mesa brincando com sua boneca Barbie-descabelada. Minha irmã não tem o menor senso artístico e ainda assim insiste em fazer maquiagem de canetinha nas bonecas, transformando-as em monstros.

― Não se acanhe em pedir, querida.

Ajudo minha mãe a pôr a mesa e pouco tempo depois meu pai chega com vovó Edite. Ela está usando um dos seus vestidos de bolinhas esvoaçantes e óculos escuros: tenho certeza de que puxei meu lado artístico dela, que é a única pessoa que sempre pareceu verdadeiramente interessada nos meus desenhos. Além, é claro da estranheza. Elay e eu acreditamos que ela não é humana, mas ainda não temos uma classificação consolidada. Fada? Feiticeira? Anjo? Não  sabemos ao certo, mas temos provas o suficiente para saber com certeza que ela é especial.

Já meu pai ao seu lado é como uma pedra. Não expressa nenhuma emoção além de mal humor. Sua aura é escura e rabiscada, como se um artista irritado tivesse agredido o papel com carvão. Em contraste está vovó, que tem uma aura de flores coloridas, tão iluminada quanto o sol.

Cat corre abraçá-la e eu sigo sem a menor vergonha em parecer idiota. Quando se trata de vovó, aparências não importam.

― Conte a história do unicórnio! Conte a história do unicórnio! ― minha irmã grita, serpenteando vovó aos pulos.

Quando ela vem me cumprimentar, seu sorriso é especialmente gigante e me sinto quase tão especial quanto ela.

― Como vai meu artista, hã?

Depois do jantar e de vovó contar a história de unicórnio até minha irmã cair no sono, finalmente tenho a oportunidade de mostrar meu retrato de Elay a sós. Vovó Edite é a única pessoa que quero que veja o desenho além da minha melhor amiga, porque seus olhos são diferentes e interpretam os sentimentos. Talvez ela possa me ajudar a entender.

― Oh, Thalles, que magnífico! Tão perturbador e mágico ― seus olhinhos miúdos analisam o desenho atentamente, captando cada detalhe. ― Parece que finalmente entendeu o segredo.

― Qual?

Ela se vira para mim, parece estar tendo um dos seus momentos de fascínio, como quando ouviu Radiohead pela primeira vez, coisa que me obriguei a lhe apresentar.

― Se deixou ser usado pela arte, não o contrário.

Sorrimos um para o outro.

― Mas há algo mais... ― ela volta a analisar o desenho ― tem algo que queira me contar?

É uma pergunta, mas soa mais como uma confirmação, então apenas meneio a cabeça afirmativamente.

Estamos na sacada, tomando um ar fresco que há muito não dá as caras nesse verão escaldante. Meu pai está assistindo a um jogo do Atlético Paranaense na sala, com Cat dormindo no seu colo, e mamãe parece absorta em seu celular, acompanhada de uma taça de vinho. É uma noite feliz, que deu as caras junto ao ar fresco.

― Elay está mudada ― digo, entredentes para que ninguém mais escute.

― Bom, querido, é normal que em certa idade passemos por mudanças, vai chegar à sua vez também...

― Não estou falando sobre a puberdade, vovó! ― fico um pouco chateado que ela não tenha percebido que cresci alguns centímetros.

Parece achar engraçado a situação, mas espera pacientemente que eu explique.

― Ela foi abduzida por alienígenas.

Vovó é a única pessoa que posso dizer isso em voz alta sem que me julgue. Então, lhe conto todas as minhas evidências, de como o comportamento da minha melhor amiga está diferente e meu medo de que nos distancie. Conforme falo, sinto como se um peso fosse retirado dos meus ombros: é um alívio poder enfim compartilhar meus anseios com alguém.

Quando acabo, a serenidade no rosto enrugado de vovó é uma âncora, como se eu não tivesse com o que me preocupar.

― Eu não estava falando só sobre mudanças físicas, Thalles ― ela diz. ― A vida toda passamos por mudanças, mudamos alguns propósitos e perdemos certezas. E a adolescência é o auge dessa montanha-russa.

― Mas eu não mudei! ― digo, ofendido.

― Mas vai ― ela dá de ombros. ― É importante, é necessário. Você não tem que lutar contra o fluxo natural das coisas.

Estou perturbado, é claro. Não esperava esse tipo de respostas.

― Mas isso não tem que ser um obstáculo na sua amizade com Elay. Ela ama você, mas tem todo o direito de amar outras pessoas também.

Vovó se aproxima e faz carinho no meu cabelo, como se eu fosse um cachorrinho que ela quer adestrar.

― Ela ainda é a mesma, mas não há nada que um bom diálogo não resolva. Fale com ela, tenho certeza de que vai te entender.

Tenho plena consciência de que vovó é sábia e que devo dar ouvidos aos seus conselhos, mas quando coloco algo na cabeça, preciso ir até o fim. Eu vou resgatar a minha melhor amiga.


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Capítulo curtinho, mas escrito com muito amor. Espero que tenham gostado! <3

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