VINTE E DOIS

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Quando abro os olhos, não enxergo nada. Por um breve momento me esqueço onde estou, até ser atingido por lapsos de memória da noite anterior.

Elay.

Obrigo meu corpo dolorido a ficar sentado, enquanto minha visão se acostuma com a claridade do dia. Ainda estou na carroceria da camionete, em cima do colchonete que sempre carrego. Ao meu lado, para o pavor da minha sobriedade, está Elay, aninhada num saco de dormir, sem o menor indício de que irá despertar tão cedo.

Ai, meu Deus. O que foi que eu fiz?

Tento manter a calma e deixar o juízo retornar. Não aconteceu nada demais, mas me sinto culpado. Não deveria ter dado tanta brecha, não deveria ter estendido a carona feita pela consideração de uma amizade de infância.

Não somos mais amigos.

Deixo o ar puro me acalmar, até criar coragem suficiente para sacudir de leve o ombro de Elay. Ela reluta em acordar, é assustador que tenha um sono tão profundo numa posição tão desconfortável.

― Ei, acorda ― chamo, tentando não notar como seu rosto está tranquilo.

Ela se mexe, ficando de barriga para cima, mas ainda sem abrir os olhos.

Mãe? ― sussurra.

Engulo em seco, sentindo o estômago revirar.

A morte de Dona Jussara foi algo que sempre evitei pensar. Todos nós ficamos arrasados quando soubemos. Minha mãe chorou por meses todos os dias, ela era sua melhor amiga. Eu não conseguia entender a ausência tão rápida de alguém que sempre esteve por perto...

― Não, é o Thalles.

São as palavras mágicas para que ela desperte totalmente. Em menos de um segundo, está sentada, me olhando cheia de pavor.

― O quê...?

Me apresso a levantar e me afastar da situação embaraçosa, onde a consciência retorna a superfície. A sobriedade torna as coisas tão mais complicadas de lidar.

Em silêncio, nos ajeitamos para ir embora. Assisto pelo canto do olho Elay contorcer o rosto o caminho todo, ela está de ressaca, o que deixa claro ― para minha surpresa ― sua falta de costume em beber. Na minha cabeça, eu tenho uma imagem bem nítida de uma Elay sem o menor problema com isso. Talvez eu tenha me equivocado, sobre muitas coisas...

Quando encosto o carro na frente do prédio que Elay está hospedada, não posso deixar de sentir alívio. Até mesmo a dor no corpo causada pelo colchonete ruim diminui de intensidade.

Fico esperando que ela abra a porta, mas está hesitante. Após o que me parece uma longa luta interna, seus olhos repousam sobre mim.

― Foi um prazer te conhecer ― as palavras contêm um tom de amargura.

Tento dizer algo, mas nada me vem à mente. Antes que eu me decida de alguma frase que possa tornar a situação menos embaraçosa, ela desce do carro e parte apressada.

Sinto um vazio no peito o caminho todo até a minha casa.

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Você Acredita em Humanos?Where stories live. Discover now