VINTE E OITO

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― Quer um refrigerante?

Olho para a mão manchada de sol do meu pai, me estendendo uma latinha de Coca-Cola. Mesmo que eu não goste de bebidas gasosas, acabo aceitando.

Ele se senta diante de mim na sua mais nova poltrona de estimação, que tem um apoio para os pés e é reclinável. Está bebendo uma cerveja, mas não me oferece. Isso me deixa um pouco aliviado.

― Então... ― o tom sugestivo me faz desviar o olhar. Finjo interesse na decoração da espaçosa sala de estar, que tem muita luz para o meu gosto. A noiva do meu pai é blogueira, tudo na casa é planejado para a garantia de boas fotos.

Depois de ficar horas no estúdio da Dona Greta, recebi uma ligação do meu pai pedindo que eu fosse até sua nova residência para assistir a um jogo do Campeonato Paranaense. Apesar de ainda sentir relutância em passar um tempo com ele, achei melhor que ir para casa e encarar meus sentimentos. Mas, assim que ele me viu, percebeu de imediato que algo estava errado.

― Como você está? ― ele pergunta e eu me arrependo de ter vindo, porque não existe a menor chance de eu desabafar com ele.

― Ótimo ― respondo, olhando para meus dedos manchados de grafite.

Eu achei que seria mais difícil recuperar o hábito do desenho. Anos repreendendo minha fonte de expressão e uma briga resolveu tudo. Fiz uma série de desenhos em grafite, acompanhado pelo sorriso orgulhoso de Dona Greta. Deixei de pensar assim que o lápis tocou na folha, sendo movido efusivamente pela confusão de sentimentos.

Não que as coisas tenham ficado mais claras, mas me sinto um pouco melhor.

― Você não parece bem ― meu pai estica as pernas na poltrona e dá uma sequência de goles na bebida. Eu odiava como ele podia ser cruel, mas odeio que esteja tentando recuperar as coisas só agora.

Tomado pela raiva, acabo dizendo:

― O que você pode saber a respeito disso?!

Ele já está acostumado as respostas afiadas dos filhos, nem ao menos parece abalado.

― Só achei que poderíamos conversar...

Dou de ombros.

Meu pai envelheceu bastante depois do divórcio, mas ainda assim é bonito. Não surpreende ninguém que sua noiva, Kelly, seja tão bonita. Ela trabalhava no escritório do meu pai, foi a amante dele por anos, até a verdade acabar vindo à tona. Depois que assumiram um relacionamento, ela começou a trabalhar com a imagem e bombou na internet. Cat tenta odiá-la, eu nem me dou o trabalho. O carisma não é só em frente as câmeras, afinal.

Olho para um porta-retrato ao lado da televisão gigantesca onde os jogadores se aquecem para a partida, meu pai está abraçado a Kelly em frente a um dos castelos da Disney. Ele só viajou com minha mãe na lua de mel, mas nem ao menos saíram do estado, o fato de ir com a noiva para outros países deixou minha mãe morrendo de raiva.

― Você vai me dar conselhos, é isso? ― pergunto, sem tirar os olhos da fotografia. Uma vez quase esbarrei nela propositalmente, apenas para ter o gostinho de quebrá-la, mas então percebi que isso não mudaria nada. No começo, não foi fácil lidar com o fato de o meu pai estar mais feliz com outra mulher, mas não durou muito. Quando notei que me sentia menos ansioso sem as brigas constantes dos meus pais, fiquei aliviado por ele estar longe.

― Talvez eu possa fazer isso ― responde.

Fico pensando no quanto as palavras do meu pai já me magoaram no passado, então acabo dizendo:

― Acha que pode remediar as coisas agora? Dar uma de paizão como se não tivesse sido um babaca no passado?

Queria não me sentir culpado por falar desse jeito, mas a expressão dolorida em seu rosto me embrulha o estômago.

Você Acredita em Humanos?Where stories live. Discover now