VINTE E QUATRO

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Muita coisa do passado tem retornado nos últimos dias. A necessidade de me isolar foi uma delas. Passo o resto do dia na casa da minha avó, que está visitando uma amiga na cidade vizinha. É bom estar sozinho, tentando reorganizar os pensamentos longe de olhares sugestivos. Bom, o gato da vovó pelo menos me olha apenas com desprezo e não parece se importar com meus conflitos do momento.

Depois do confronto com a tela inacabada que estampa Elay, prometi a Dona Greta que voltaria a visitá-la e me apressei em dar o fora. Eu não conseguiria suportar por muito mais tempo ser fulminado pelo olhar de uma pintura, que parecia saber de todos os meus segredos. E mesmo perturbado, no caminho para cá, decidi passar numa papelaria e comprar um bloco de folhas.

Nunca pensei que uma folha em branco pudesse me intimidar tanto.

Tendo horas livres para arriscar produzir algo, tudo o que consegui ― movido a frustração ― foi uma folha inteira tingida de carvão. Nunca me senti bloqueado para produzir, na verdade foi ao contrário: eu bloqueei minha produção e agora não sei como voltar atrás.

Depois de dividir meu tempo entre encarar folhas e assistir a documentários na televisão de tubo da vovó, noto a luz tênue rosada que transpassa a persiana e sei que está na hora de voltar para a casa.

Não ter usado o carro hoje para as minhas andanças me deixa com menos peso na consciência por ter faltado no treino. Caminho num ritmo constante, controlando a respiração. Gosto de fazer exercícios porque me sinto mais leve.

Opto pelo caminho da Avenida Beira-Mar, não só porque gosto de ser envolvido pela sensação que o mar proporciona, mas também porque quero arriscar ver Elay novamente. Sei que ela já deve ter saído do trabalho uma hora dessas, mas meu impulso não é racional.

Quase suspiro de frustração quando vejo que a loja de discos já está com a porta de aço abaixada totalmente. Quase. Ainda há uma parte minha que sabe que eu deveria voltar aos trilhos antes que acabe tendo que lidar com mais coisa do que sou capaz.

Faço o resto do caminho que sobra até a minha casa correndo. Gosto da sensação do vento batendo contra minhas bochechas e do meu corpo esquentando. Em poucos minutos avisto a fachada recentemente pintada de amarelo da minha casa. Limpo o suor da testa com o dorso da mão e entro.

― Mãe! Cheguei! ― minha voz reverbera pelas paredes.

― Thalles! Onde você estava? Eu te liguei umas cem vezes para descobrir que seu celular ficou em casa! ― ela diz, surgindo da sala.

Tento dar um sorriso tranquilizador. Ignorar o celular é ignorar os problemas. Eu precisava disso.

― Eu esqueci ― minto.

Ela revira os olhos e eu ameaço abraçá-la, fazendo com que pule para longe.

― Você está todo suado ― ela torce o nariz. ― E nós temos visita.

Franzo a testa. Minha mãe adora ficar trazendo suas amigas do pilates para jantar com a gente, mesmo que ela mal saiba cozinhar ― além das receitas fitness básicas.

― Eu vou tomar um banho ― digo, sorrindo amarelo.

Sigo ela até a sala, com o intuito de passar sorrateiramente e ir para o banheiro. Geralmente as amigas da minha mãe estão tão envolvidas em fofocas que nem me notam. Dou passos leves mirando o corredor, mas antes que eu possa alcançá-lo, sou interrompido:

― Oi, Thalles!

Giro nos calcanhares com todos os músculos rígidos para encarar o senhor Gael, acomodado no canto do sofá, tomando uma cerveja.

Você Acredita em Humanos?Where stories live. Discover now