O patrãozinho

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O boy sentia a sexta-feira escapar pelos seus dedos sujos de graxa. Sete horas da noite e ele ainda na cada do doutor Ignácio. Lustrando os sapatos do "patrãozinho".

Olhou para Eugênio. O garoto estava distraído. Agitava uma régua no ar feito um espadachim cercado por inimigos. A cada golpe emitia sons guturais, imitando a torcida vibrar.

- Taí, olha só que chinfra! - disse Edmundo, mostrando o sapato brilhante.

- E a camisa?

- Que tem ela?

- Quem vai passar?

- Você tem alguma ideia?

- Tenho.

- Eu?

- Foi você quem disse.

- Mas eu preciso ir pra casa!

- Hoje é meu aniversário, Edmundo.

Os garotos tinham a mesma idade. Mas Eugênio não sabia descascar uma banana sozinho. Doutor Ignácio tinha até proibido Edmundo de fazer serviços para seu filho. Quanta briga o boy via entre Eugênio e seu pai por causa disso.

Mas o "patrãozinho" insistia. Ligava para o escritório e chamava Edmundo para tudo: ditalografar trabalho de escola, levar hambúrguer no meio da tarde, comprar cola de aeromodelo...

- Posso usar essa mesa para passar a camisa?

Eugênio não respondeu. Estava distraído de novo. Pé ante pé, aproximava-se do par de sapatos como se fosse enfrentar um monstro marinho.

Edmundo começou a limpar a mesa. Estava atulhada: livros, vidros de cola, vidros de tinta, um aeromodelo inacabado, e uma foto de doutor Ignácio, ainda bem moço, posando na frente de um avião.

- Você acha mesmo que esses sapatos combinam? - perguntou de repente Eugênio, com o "monstro marinho" na mão.

- Que roupa você vai vestir?

- Meu pai disse pra eu vestir o terno azul-marinho que ele me deu.

- Normal - disse Edmundo ligando o ferro de passar na tomada. - Doutor Ignácio quer ver você na estica. É seu aniversário!

- Nada disso. Papai convidou um cara importante; quer fechar um negócio. Vou me vestir feito um pinguim para agradar o tipo.

- Meu, se liga! A festa é pra você.

- Você acha que papai ia lá se preocupar com meu aniversário?! Ele qu...

Eugênio nem terminou a frase. Tapou depressa a boca. Depois de soluçar, disse:

- Pior é que, nessas horas, sempre me ataca a aerofagia.

- Ataca o quê?

Antes que Eugênio começasse a explicar, a porta do quarto se abriu. Era o doutor Ignácio. Foi entrando e reclamando:

- Já está pronto, Eugênio? Não vai se atrasar você também! Me basta esse cisne maldito!

Deu de cara com Edmundo. O boy estava com o ferro de passar na mão. Paralisado. Doutor Ignácio fuzilou Eugênio com o olhar.

- Você ainda não se arrumou, Eugênio? - perguntou doutor Ignácio, tentando se controlar.

- Estou pass... o Edmundo está passando a camisa.

Doutor Ignácio respirava fundo, mas acelerado. Voltou-se para Edmundo. O homem ia virar um lança-chamas!, pensou o boy.

- Presente de aniversário - justificou Edmundo.

E tentou sorrir.

- Você não consegue mesmo fazer nada sozinho, Eugênio - sentenciou o pai, com a voz trêmula. - Já agradeceu?

- Não, senhor. Ainda não...

- Então pode agradecer. Que o Edmundo está indo embora. Já.

Pai e filho se encararam. Sem dizer palavra. Como dois pesos-pesados antes da luta.

Imediatamente, Edmundo deixou o ferro de passar de lado. Pegou a pastinha e foi saindo. Quase desejou "feliz aniversário" de novo, mas se conteve.

Já era a hora de o gongo soar.

Edmundo correu pelo corredor e desceu a escadaria. Finalmente ia embora. Que sexta-feira comprida!

Cadeiras atravancam a passagem. O boy foi passando entre elas, como se andasse por uma trilha no meio da mata.
Foi então que percebeu o silêncio.

O que tinha acontecido? Preparavam uma festa e não se ouvia barulho nenhum na casa? Diminuiu o passo. Foi se aproximando da porta de saída com cuidado.

Afinal, o silêncio não era total. Um murmúrio, um vozeiro vinha se aproximando. Chegando mais perto. Mais perto. Mais perto... Edmundo se encostou na parede, quando uma multidão de garçons e copeiras entrou na sala.

- Por aqui, por aqui - berrava nervoso o homem de paletó verde-garrafa, que vinha à frente.

Chegava pela porta, carregado por quatro homens de avental: um imenso cisne de gelo! O vozeiro cessou. Todos pararam para admirar a peça.

Quebrando o silêncio, uma voz chegou do fundo:

- Vamos lá, pessoal. Isso não pode ficar aí a noite toda...

Era dona Clara. Mãe de Eugênio.

- O que vocês estão esperando? - instistiu sem rispidez.

O vozeiro recomeçou.

Dona Clara trabalhava como médica. Acabara de chegar do trabalho e ainda estava vestida de branco. Tratava-se de uma pessoa sempre sorridente. Apesar da grande disposição, seus gestos eram leves.

Tirou os sapatos, subiu em uma cadeira e começou a dar orientações.

- Levem o cisne para o jardim. Os convidados estão chegando e ainda precisamos dar um jeito nessas cadeiras.
O cisne passou aos pés de dona Clara, sumindo pela porta dos fundos. As copeiras voltaram a arrumar a sala.

- Você não é o Edmundo? - perguntou dona Clara, do alto da cadeira.

- Sim, senhora.

- Você está um pouco... diferente... O que fez no cabelo?

- Mudei a onda de lado.

- Fez bem. Fica melhor do lado esquerdo mesmo.

- Toda semana eu tenho um lado diferente.

- O que está fazendo aqui? Eugênio convidou?!

- Não, senhora. Vim trazer uns papéis para o doutor Ignácio assinar.

- Mas fica para a festa, não fica?

- Não posso. Tenho de ir para casa preparar a janta para meu pai. Ele trabalha de vigia noturno. Já estou atrasado.

- Que pena! Você ia ser o único convidado com a mesma idade do Eugênio.

Nesse momento, ouviu-se do andar de cima uma gritaria. Era doutor Ignácio discutindo com Eugênio.

- É uma pena mesmo... - murmurou, olhando na direção do quarto do filho.
Depois, dona Clara se perdeu em pensamentos. O boy achou melhor ir embora sem se despedir.

Quando finalmente Edmundo botou o pé na rua, viu uma lua do tamanho de uma pizza gigante no céu.

Office-boy em ApurosWhere stories live. Discover now