Cílios batendo feito leque

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Em uma das últimas passagens das Memórias idênticas, Maria Paula escreveu:

"Ao impaciente leitor darei uma breve explicação do que passava por meu coração e mente, em relação ao desafortunado Edmundo: não consegui parar de pensar nele. O tempo todo me vinha à memória seu jeito de olhar tristemente sob as sobrancelhas, os cílios longuíssimos batendo feito leque.

Preciso confessar, mais uma vez nestas repetitivas páginas memoriais, que não podia imaginar que houvesse tantos sentimentos dentro de mim. Multidões. Todos alvoroçados e incontroláveis. Isso por causa duns olhos, duns cílios.

Eu, que sempre amei incondicionalmente as palavras, devo admitir que as coisas também têm seu poder de sedução. Noto isso quando percebo que minha aprimorada, ainda que prematura, arte da descrição é pífia no que tange às sensações do - devo ser metafórica? - coração.

Atento e dedicado leitor, acompanhe meu raciocínio: o que podia ser Edmundo para mim além de um vocábulo de extensas possibilidades? Só posso dizer que, agora, aquele garoto me afastou irremediavelmente do substantivo em questão. Calma, confuso leitor. Já me explico: Edmundo para mim, neste momento, são menos letras que olhos e cílios longos... Nunca mais terei dessa palavra apenas o dom, a caligrafia fria e distante.

Mas a vida tem seus lenitivos inesperados e involuntários. Imagine o emocionado leitor que minha irmã e eu fomos apanhadas em flagrante delito. Não. Não pense o(a) senhor(a) que está frente à memória de um infrator costumaz ou delituoso qualquer. Antes que o chocado leitor feche este livro e o retire do alcance das crianças, devo avisar que se trata de um mal que veio para o bem: depois do fatídico incidente em que corrigi o professor Pacífico - lembra? -, uma sindicância levantou a necessidade de um rigoroso controle de todas as gêmeas da escola, quanto à, digamos, autenticidade de comparecimento. Em outras palavras: descobriram que uma irmã fazia a prova pela outra.

Só me restou iniciar-me tardiamente mo inefável munda das ciências.

Não pense o(a) senhor(a) que estou triste. Esta nova situação me obriga a desviar o pensamento das coisas do coração e da solidão".

Maria Paula escrevia esse trecho, quando Maria Isabel entrou no quarto. Tinha voltado mais cedo para casa. Como sempre, logo que entrava mo quarto, jogava seus livros num canto, arracava os sapatos de qualquer jeito e subia para sua cama no beliche. Depois, suspirava profundamente.

- Como é que você pode gostar de análise sintática? - perguntou Maria Isabel.

- Matéria nova, hoje?

- Acho que sim. Como é que vou ter certeza? Nunca estudei essa coisa antes!

- Vai acabar gostando.

- Não acredito. Onde é que a gente vai usar isso na vida?! - disse isso e de virou, avistando a escrivaninha onde Maria Paula trabalhava: as folhas das Memórias estavam espalhadas sobre um livro de Física. - E você? Não devia estar estudando?

- Devia.

- Não sei como você pode ficar enrolando desse jeito.

- Não consigo estudar.

- Pensando naquele garoto?

- É.

- Melhor esquecer. Semana que vem tem prova. Não quer passar de ano? Quando pego uma coisa pra estudar, quero terminar logo.

- Nunca pensa no Plínio?

- Pra que pensar? Encontro com ele e pronto.

- Mas vocês se encontram tão pouco.

- Paulinha, sair com namorado é matéria decorativa... Você acha que eu preciso perder mais tempo com o Plínio?

- E o primo dele, o Eugênio?

- Que tem?... - respondeu Maria Isabel, depois de um breve silêncio.

- Vai me enganar que não pensa nele.

- Como investimento futuro. O menino está em baixa, agora.

- Não precisa vir com essa pra cima da sua irmã, Isabel!

- Sério. Por que não acredita? - disse Maria Isabel, sentando-se na cama. - Você precisa crescer... Aí vai saber do que estou falando.

A memorialista ficou observando sua irmã por um instante. Estava lá, na parte de cima do beliche, as pernas balançando. Tranquila. Sem emoção. Um medo enorme de crescer tomou conta de Maria Paula.

Office-boy em ApurosWhere stories live. Discover now