Pai e filho

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O expediente tinha terminado no escritório do doutor Ignácio. Depois de toda a correria da tarde, Edmundo queria voltar logo para casa. Estava embrulhando sua marmita na copa, quando Eugênio chegou.

- Só vim pegar minha pastinha - disse Eugênio.

Sem desviar o olhar do que estava fazendo, Edmundo disse, depois de um tempo:

- Olha aí: foi legal.

- O quê?

- O que você fez hoje à tarde. Livrou minha caea. Fico devendo. Uma mão lava a outra

- Deixa pra lá.

- Nada disso - respondeu Edmundo, um pouco ríspido. Quando precisar dar uma saída, avisa. Quebro a sua. Não gosto de ficar no vermelho com ninguém.

- Por mim a gente já acertou.

- A gente não acertou nada - disse Edmundo, levantando os olhos e encarando Eugênio.

- Falando de Maria Isabel? A menina não ficou com nenhum de nós!

- Deixa quieto. Não tou afim de levar esse lero, agora. Minha cabeça vai a mil. Botaram o meu pai na rua, e eu devia era estar agitando um trampo pra ele em vez de gastar meu tempo com você.

E saiu, batendo a porta.

Eugênio ainda ficou um tempinho sozinho na copa. Depois apanhou sua pastinha e foi embora.

O caminho que o ônibus fazia até sua casa era cheio de edifícios altos e sombrios. Naquela noite, distraiu-se olhando as janelas mal iluminadas. Ficou imaginando as vidas dos moradores. Criou em sua cabeça várias histórias. Todas parecidas com a história de Edmundo e seu pai desempregado.

Era a primeira vez que seus devaneios não envolviam aventureiros e espiões.

Depois de jantar com a mãe, subiu ao seu quarto. Tinha resolvido fazer uma arrumação. Começando pelos aviõezinhos inacabados. Relacionou todos e fez um inventário do que faltava. Decidiu que começaria pelo modelo sobre sua escrivaninha: o Nieuport 17C-1. Estava manipulando a miniatura, quando Doutor Ignácio abriu a porta do quarto:

- Sua mãe disse que você queria conversar comigo.

O filho se virou. Encarou o pai. Ficou um tempo em silêncio. Fazia quase uma semana que não trocavam nasa além de "bom dia" e "boa tarde". Sempre no escritório. Respondeu:

- Quero.

Doutor Ignácio ficou surpreso com a resposta direta de Eugênio. Esperava um "sim, senhor". A segurança e a repentina maturidade do filho o balançou. Procurou não deixar transparecer. Deu uns passos, olhou em volta. O quarto continuava desarrumado

Parou no centro do quarto e disse:

- Pode falar.

- O pai do Edmundo foi despedido. Acho que o senhor podia ajudar.

A surpresa do doutor Ignácio cresceu. A situação se tornava quase insólita. Estava esperando que o filho pedisse para deixar o trabalho. Tinha preparado para fazer um discurso sobre as obrigações de um pai.

- De que jeito? - perguntou doutor Ignácio, tentando manter a pose.

- Arrumando trabalho pra ele.

O pai começou a examinar os aviõezinhos pendurados no teto. Enfrentava uma situação inesperada; procurava ganhar tempo. Seu filho estava sendo objetivo e lúcido como tantas vezes exigira. E, no entanto, doutor Ignácio não conseguia se adaptar à nova situação.

- As coisas andam difíceis - retomou doutor Ignácio.

- Eu sei.

- Todo mundo está procurando emprego.

- O senhor conhece muita gente.

Ele tinha razão, pensou doutor Ignácio. Passava o dia no telefone, ouvindo piadas antigas. Mas, quando quis desabafar sobre o filho com alguém, não encontrou ninguém. Continuou escutando as mesmas anedotas.

Isso provavelmente Eugênio não sabia.

Eugênio olhava para ele. O pai teve vontade de passar a mão pelo cabelo do filho. Mas se conteve. Tinha se preparado para fazer um discurso sobre as obrigações de um sai, lembrou-se de novo. Por um instante teve uma vontade incompreensível de sair sem dizer nada.

- O que sabe fazer o pai de Edmundo? - perguntou, desistindo de entender seus sentimentos.

- Trabalha de vigia noturno. Mas pode fazer qualquer coisa.

- A firma já tem uma pessoa à noite.

- O que o senhor conseguir está bem.

O pai olhou para o filho. Como era possível o garoto ter mudado em tão pouco tempo? Estava mais seguro, pensou. Mais maduro. Será que tinha ficado tempo demais sem conversar com Eugênio?

- Diz para o Edmundo mandar o pai falar com o Departamento de Pessoal - disse doutor Ignácio, finalmente. - É bom também ter um vigia também de dia.

Tentando se esquivar do olhar sereno do filho, o pai pousou os olhos no porta-retratos sobre a escrivaninha. Era uma foto dos tempos da aeronáutica. Estava de uniforme e capacete. Ele e seus companheiros. Vaidosos.

- Por que você guarda isso? - perguntou doutor Ignácio, apontando para o porta-retratos.

- Eu gosto.

- Não saiu boa. O tempo estava nublado. Mas havia teto para decolar.

- Obrigado, pai - disse o garoto, com a voz firme.

Já saindo do quarto, doutor Ignácio apontou para o modelo sobre a escrivaninha:

- É o Nieuport 17C-1, não é?

- Isso mesmo.

- Está ficando bom.

- Foi num desses que Flammarion fugiu.

- Quem?!

- Eugène Flammarion. O senhor sempre contava as aventuras do aventureiro Flammarion. Esqueceu?

Tinha mesmo esquecido. O pai inventara a personagem para embalar seu filho. Contava longas histórias do aventureiro desiludido. Multiplicava as peripécias só para ver o menino adormecer em seus braços. Eugênio ainda era pequenino.

Office-boy em ApurosWhere stories live. Discover now