Um problema de português

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O quarto de Maria Paula e Maria Isabel não era muito espaçoso. Tinha um guarda-roupa, um gaveteiro, uma escrivaninha e uma cama beliche.
A escrivaninha era o lugar preferido de Maria Paula. Maria Isabel, por seu lado, escolhera a cama. O tempo que passava no quarto, passava deitada.

Apesar de tarde, Maria Paula ainda escrevia suas Memórias Idênticas. Sentade à escrivaninha, podia ouvir sua mãe assistindo televisão na sala. No alto do beliche, sua irmã ressonava.

O trecho era o seguinte: "Agora devo confessar os defeitos. Detesto Ciências. Simplesmente não consigo entender Física, Química e Biologia!

Ocorre que minha irmã gêmea, a já citada anteriormente Maria Isabel, domina perfeitamente os números e os gráficos. Mas abomina Português. Ela não consegue entender a óbvia diferença entre um adjunto de modo e um adjunto de instrumento, por exemplo!

O que fez mamãe? Solidária a nossa situação e aproveitando-se da nossa extrema semelhança, matriculou as duas no mesmo colégio. Mas em horários diferentes. Maria Isabel estuda à noite, e eu estudo pela manhã (à tarde trabalhamos, como o leitor bem se lembra).

O que isso facilitou nossa carreira escolar? Muito. Nunca fiz uma prova de Física na vida! Fica a cargo de Maria Isabel; provas de Português, em compensação, faço as minhas e as de minha irmã.

Por isso, caro leitor, não acredite ao ler em qualquer uma de minhas biografias não-autorizadas (que porventura forem escritas) que fui a primeira aluna de minha turma. Fui meia-primeira aluna. Maria Isabel foi a outra metade.
Se alguma vez esse esquema falhou? Sim, uma vez.

Vou contar. Se é verdade que existem rebeldes sem causa, também é verdade que existem implicantes sem motivo. O professor de Física é um deles. Chama-se Pacífico. O leitor interessado pode perguntar a qualquer aluno da escola: é o mais temido de todos os docentes.
Certa manhã entrou na sala, trancou a porta e disse sinistramente:

- Hoje vamos ter uma prova surpresa.

Professor Pacífico escreveu o problema na lousa com letra de fôrma caprichada. Depois se voltou para a classe e determinou.

- Faltam trinta minutos para eu recolher a prova.

O leitor pode imaginar meu desespero? Nem se faltassem trinta anos eu resolveria aquele problema.

Para piorar a situação, o professor Pacífico tinha a sádica mania de passear pelas carteiras. De vez em quando parava atrás de um aluno, dava uma olhada nos cálculos rabiscados na folha de prova e saía fazendo caretas indefiníveis.

- Faltam quatorze minutos.

O que o leitor faria no meu lugar? O desastre parecia mais próximo a cada minuto que passava. Foi então que reli o problema. Começava assim: (tratava-se de um problema de cinemática) Um elefante de peso desprezível passeia com velocidade média de 0,37 metros por segundo. À medida em que se aproxima do outro... Isso me doeu no ouvido. Levantei a mão e disse:

- Professor Pacífico! Há uma inconsistência em seu problema. Não existe em português a locução à medida em que. O correto é à medida que! Do jeito que o senhor escreve, um elefante nunca vai encontrar o outro.

O professor Pacífico ficou vermelho, roxo, multicolor enfim. Suspendeu a prova e saiu direto para a sala da diretoria, pedindo minha suspensão. A discussão só terminou na hora do almoço. Ouvindo o conselho do orientador pedagógico, a diretora deu razão à aluna. Eu mesma, como bem se lembra o atento leitor.
E essa é a história de como a narradora escapou de um inevitável e redondo zero
Espero que o leitor receba essa confissão com compaixão..."

Maria Paula parou de ler. "Com compaixão" não soava bem, pensou. Fez um rabisco na folha. E continuou lendo: "Espero que o leitor receba essa confissão com condescendência..." Parou de ler, outra vez. "Com condescendência" também não soava bem. Quebrou a cabeça, mas não conseguiu e encontrar outra palavra. Desistiu. Já estava ficando tarde.

Trancou as folhas na sua gaveta e foi se deitar. Maria Paula começou a piscar. Mas ainda teve tempo de se lembrar daquele garoto da festa de sexta-feira. Suas roupas extravagantes, seus olhos grandes. O beijo...

Maria Paula adormeceu com um sorriso nos lábios.

Office-boy em ApurosWhere stories live. Discover now