Quarta-feira negra

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O carrilhão da Basílica badalou doze vezes: meio-dia. Eugênio vinha pelo calçadão. Morrendo de fome.

Fazia e refazia as contas na cabeça. Tinha apenas uns trocados. Não dava nem para o pãozinho sem a esfiha. Pensava nisso, quando avistou Edmundo conversando com Arnaldão, Calixto e Jó.

- Olha aí, Ed - chamou Calixto ao avistar Eugênio. - Não é o seu estagiário?

- Está boa a conversa? - perguntou Eugênio, ironicamente.

- Está. Mas não é com você - respondeu Edmundo.

- Foi pra isso que jogou todo o serviço na minha mão?

- Escuta aqui, "patrãozinho": faço o que quiser, estou na minha hora de almoço.

- Pous eu, não. O Plínio não me deu dinheiro.

- Isso é mau... - condoeu-se Calixto, mesmo contra a vontade.

- Principalmente porque hoje tem feijoada completa no Atílio - completou Arnaldão.

- Acho que podia comer duas inteiras - resmungou Eugênio.

- Hummmm - desdenhou Arnaldão. - Você?! Duas? Do Atílio?

- Com a fome que estou!

- Não é uma questão de fome, meu filho.

Apesar de ser o mais novo de todos, Arnaldão tratava os companheiros por "filho". Especialmente quando queria desafiar alguém. A turma sabia disso. E esperou.

- Questão do quê? - enfrentou Eugênio, movido a vácuo no estômago.

- Você não tem a manha...

- Mas tenho boca.

- Isso é o que eu quero ver. Vamos fazer uma aposta: quem comer menos paga a conta!

- Se liga, Arnaldão - intercedeu Calixto. - O moleque está sem dinheiro.

- Então vamos fazer o seguinte: pago a conta de qualquer jeito. Mas quem perder vai ter de subir no elevador da Bolsa de Valores. Logo depois do almoço.

- O elevador da Bolsa é maldade - reclamou Jô.

- Então? - insistiu Arnaldão. - Fechado?

- Fechado - respondeu Eugênio, selando sua sorte.

E lá se foram todos, na direção do Buraco do Atílio. Por onde passavam, os outros boys perguntavam o que estava acontecendo e seguiam juntos. Ninguém perdia as performances do Arnaldão Vinte e Duas.

O Buraco do Atílio ocupava o subsolo de um edifício de escritórios. Era um lugar apertado, com poucas mesas de fórmica, azulejos até a metade da parede e colunas ladrilhadas. Por causa do horário, o boteco estava cheio. Mas Edmundo explicou a situação e o próprio Atílio arrumou logo uma mesa.

Eugênio e Arnaldão sentaram-se. Frente a frente. Edmundo foi escolhido como juiz da contenda. Curiosos se acotovelavam para acompanhar o embate.

Chegaram as duas primeiras feijoadas. Completas. Até demais: feijão rosteado e caldo denso; carne-seca, paio, rabo, entre outros pertences; costeleta, linguiça, couve na manteiga e o sinistro torresminho. Além da meia laranja.

O aprendiz controlou seu espanto. Arnaldão manteve sua tradicional expressão fleumática e grave. Em poucos minutos as duas primeiras feijoadas foram dizimadas. Serviram só de aquecimento. A sorte das duas seguintes não foi melhor.

Pediram a terceira rodada. Os contendores já não comiam tão vorazmente. Eugênio se perguntava como tinha ido parar naquela situação. Pensou em desistir. Mas não queria passar vergonha na frente dos boys. Decidiu continuar.

O desafiante estava surpreso com seu adversário. Tinha certeza de que o moleque não passaria da primeira rodada. Nunca ninguém tinha enfrentado Arnaldão Vinte e Duas daquele jeito. A plateia vibrava.

Calixto reparou que Eugênio estava ficando pálido. Aconselhou:

- É melhor subir o elevador da Bolsa depois de três feijoadas.

Eugênio nem respondeu. Reservava todas as suas forças para mastigar. E engolir. Mastigar. E engolir.

Quando chegou a quarta rodada, Arnaldão achou por bem propor uma alteração nas regras:

- Em caso de empate, os dois ficam dispensados do elevador da Bolsa. Concorda?

Eugênio entendeu que o adversário estava fraquejando. Sentiu que precisava aproveitar a chance se quisesse vencer. Com muito esforço, respondeu:

- Se hover empate, os dois ficam obrigados a subir no tal elevador.

A plateia murmurou, espantada.

Arnaldão olhou bem para Eugênio. Admitia que o adversário era valente. Mas precisava de uma lição: chamou mais duas feijoadas completas. Eugênio acabou se apreendendo da sua presunção. Olhava para as carnes e elas pareciam acenar para ele com minúsculas mãozinhas. Bem que ele tentou, mas não conseguiu passar do primeiro torresmo. Oficializou sua desistência com um arroto.

Usando suas últimas forças e enzimas, Arnaldão começou a sua feijoada. As garfadas ficando mais lentas, mais lentas. Até que finalmente restou apenas uma meia laranja.

- Só vence se comer tudo - reclamou Eugênio.

O desafiante olhou para a laranja. E vacilou. Houve um instante de suspense no Buraco do Atílio. Finalmente, Arnaldão engoliu de uma vez só a fruta.

A torcida aplaudiu.

Eugênio tinha perdido a disputa.

- Onde fica o tal elevador? - perguntou o derrotado aprendiz.

- Esquece! - declarou Arnaldão, esparramado na cadeira. - Comeu com garra: pra mim você também é vencedor.

Os aplausos explodiram outra vez, com o gesto magnânimo do campeão. Mas Edmundo interrompeu, dizendo:

- Nada disso. Perdeu tem que pagar.

- Que é isso, Edmundo? - reclamaram Jó e Calixto, estranhando a intransigência do amigo.

- O juiz sou eu.

- Por mim... - ia dizendo Arnaldão, mas foi interrompido pelo perdedor.

- Onde fica o tal elevador? Faço questão de acertar minha dívida.

Quando entrou no elevador da Bolsa, poucos minutos depois, a palidez de Eugênio chegou mesmo a chamar a atenção do ascensorista. Mas ele nada comentou. Esperou pelo último passageiro e fechou a porta.

O elevador começou a subir. Estava lotado. Na frente do garoto, um senhor de terno elegante lia o jornal de finanças. Cheio de números. A vista do aprendiz foi embaralhando.

De repente, o elevador parou. Mas a "feijoada" continuou subindo. Feijões e rabos mal digeridos espalharam-se sobre os números sobre os números do jornal de finanças, causando uma reação em cadeia dos outros passageiros. Tampouco outros senhores de terno resistiram à cena, logo que se abriram as portas do elevador.

Esse dia ficou conhecido na Bolsa de Valores como a Quarta-feira Negra.

Office-boy em ApurosWhere stories live. Discover now