Um

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Virei para o lado e voltei a dormir, dessa vez afastado o suficiente para não me incomodar com o ritmo frenético que meu companheiro respira. Nós estamos juntos há quase três anos, mas esse é o terceiro mês compartilhando o mesmo endereço. Passamos alguns meses em busca de um apartamento para ser o nosso lar. Quando encontramos o endereço ideal, assinamos o contrato de aluguel e a mudança aconteceu imediatamente. Quase não tínhamos móveis e eletrodomésticos nessa época. Eu prometi para mim mesmo que íamos deixar tudo como sonhávamos e que eu contaria tudo sobre nosso passado a ele. Não queria ter mentiras vivendo sob o mesmo teto. O primeiro objetivo já foi em partes cumprido, mas o segundo ainda é motivo das minhas insônias.

Desde a mudança eu acordo incomodado pela respiração de Daniel. Ai me afasto e volto a dormir. Depois disso sempre tenho o mesmo pesadelo, levanto novamente e vou para o banho. É nesse momento que meu cérebro começa a martelar: como contar que nós éramos vizinhos? Como explicar que eu era a criança do outro lado do muro? Como fazê-lo entender o que aconteceu? As perguntas não têm resposta, só me deixam ansioso e com a certeza de que vou perder o amor da minha vida.

É com esse negativismo que saio do banho e vou passar o café. No caminho do quarto até a cozinha estou sempre muito agitado. Fato que já rendeu a mudança na posição de alguns móveis e um dedinho que jurei ter quebrado, tamanha dor.

A verdade é que o que tenho para contar não é tão simples assim.

*

Eu sempre morei naquela rua. Ela era sem saída, ou seja, perfeita para brincar de pega-pega, andar de bicicleta e jogar bola. Principalmente porque poucos moradores tinham carro, ou seja, a circulação era em maior parte de pedestres e ninguém ia correr o risco de ser atropelado brincando. Mas eu não tinha com quem brincar. Era a única criança entre os moradores e esperava ansioso pela visita de sobrinhos e netos dos meus vizinhos. Os feriados e períodos de férias eram dias de gloria e me faziam imaginar o quão bom seria se uma família com filhos se mudasse para a minha rua.

Quando vi o caminhão cheio de móveis parado em frente ao portão da casa germinada a da minha avó, parei de assistir ao desenho para observar a movimentação encostado no sofá. A sala da nossa casa era de frente para o portão, então só precisei me virar levemente para minha atração ser a família que chegava ao bairro naquela manhã. Não demorou para eu ver uma bicicleta do mesmo tamanho da minha e, em seguida, uma caixa de brinquedos. Comemorei muito a chegada de uma criança na rua. Lembro que passei a tarde fazendo um desenho e a noite toda colorindo com minhas canetinhas especiais – vovó disse que elas tinham sido caras, por isso eu economizava para durarem até o próximo Natal. Ninguém na escola tinha canetinhas iguais essas, então deduzi que de fato eram diferentes e mereciam cuidado. Escrevi meu nome e dei boas-vindas ao novo amigo usando todas as cores. Já era tarde quando terminei, por isso minha vó disse para adiar a entrega até a próxima manhã.

Acordei empolgado como nunca naquele sábado. Vesti minha camisa preferida, vovó arrumou meus cabelos e caminhei sorridente até o portão de madeira recém-pintado de azul. Toquei a campainha. Minhas mãos estavam suadas de ansiedade. Foi um homem mais velho que atendeu. Ele era mais alto que vovó e tinha braços musculosos, mas nenhum cabelo na cabeça – só no queixo e no nariz, como pude observar olhando pra ele de baixo pra cima. Não abriu o portão, só me disse que estava muito cedo para visitas e que Daniel, seu filho, estava dormindo. Prometeu que entregaria o desenho quando ele acordasse.

Fiquei a manhã inteira no quintal esperando meu novo amigo me chamar para brincar. Daniel não apareceu naquele dia. Já tinha anoitecido quando minha vó me chamou para entrar e me ajudou a recolher os jogos que eu tinha separado e espalhado por toda a sala. Ela disse que talvez ele estivesse cansado por conta da mudança. Acreditei e esperei por ele durante todo o final de semana, mas só nos cruzamos na segunda-feira. Eu estava saindo para a escola e reparei que o amigo que tanto esperei também estava. Ele vestia o uniforme de um colégio diferente, mas a mochila era do mesmo personagem do meu estojo. Fato que me fez ter certeza que nossa amizade aconteceria. Mas não naquele dia. Eu sai andando com a minha vó para um lado, Daniel entrou no carro de seu pai e foi para o outro.

- Vovó, o nome dele é Daniel.

- É mesmo, meu amor? Como você sabe?

- O pai dele disse, quando eu fui entregar o desenho. A senhora acha que nós temos a mesma idade?

- Talvez sim, não tem como ter certeza.

- Será que o pai dele deu o desenho? Acho que ele não gostou...

- Claro que ele entregou, Alberto. Porque ele não entregaria algo que você fez com tanto carinho?

Apesar de ter sido tudo muito rápido, tive a sensação de que o pai dele me olhou de uma forma estranha. Eu só tinha 11 anos quando a casa 323 ganhou moradores. Naquela época minha vida se dividia entre ir à escola, andar de bicicleta e desenhar.

Eu já amava desenhar.

Não entendi o olhar que recebi naquela manhã. Mas o fato é que ele ficou na minha mente durante todo o dia. Até a professora notou que algo estava errado comigo. Pela primeira vez eu senti medo de alguém da vizinhança. Não contei para a minha avó, ela parecia gostar dos nossos novos vizinhos e já tinha muitos problemas para resolver, pois éramos só nós dois em casa.

***

Espero que você tenha gostado do primeiro capítulo da história. Conta para mim nos comentários e não esquece de deixar o seu voto (é só clicar na estrelinha), isso é muito importante para a divulgação do livro.

O próximo capítulo sai na terça-feira, às 17 horas, te vejo por aqui né? Caso queira conversar comigo antes disso, eu sou @VicctoriaSilva em todas as redes sociais :)  

O Azul do Meu PassadoWhere stories live. Discover now