Quatro

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Naquele dia cheguei ao trabalho e descobri que tinha uma entrega que demandava ao menos três semanas e deveria ser feita em cinco dias. A editora demitiu o outro ilustrador e sobrou para mim criar a capa e todos os desenhos de um livro infantil que será publicado no próximo semestre. O prazo mudou de última hora. Então vou ter que fazer muitas horas extras, chegarei tarde em casa e terei tempo de me preparar para encarar Daniel.

Pela primeira vez o acumulo de trabalho foi bem-vindo.

Desde então tenho chegado em casa tarde todos os dias e, muitas vezes, com trabalho na mochila. Mas, a verdade é que não parei de pensar no que Daniel me ouviu dizer enquanto eu dormia e, principalmente, como eu explicaria se tivesse algo a ver com o meu pesadelo.

Esse é um assunto inevitável. Eu sei. Mas estou há meses planejando a maneira correta de contar. Certamente terei que começar do início. Falar sobre o dia que ele se mudou. Sobre o desenho. Revelar que era eu do outro lado do muro. Mas meu pesadelo não envolve nada disso, ele começa no dia que eu não aguentei mais ser alvo de piadas, quando eu me esgotei das ameaças e decidi responder.

*

Daniel e eu, ou melhor, e Pedro, só não se tornaram amigos inseparáveis por conta do muro que estava no meio do quintal. Nossas brincadeiras eram incríveis. Mas, uma coisa era fato: o pai dele não aprovava nossa amizade e a mãe tinha muito medo do esposo. Por isso, ela aceitava que brincássemos, com uma única condição: que não tivéssemos contato físico e que parássemos antes do marido voltar.

Por mais de uma vez ouvi meu amigo me perguntar sobre a minha doença.

Por mais de uma vez cruzei com o pai dele e recebi aquele mesmo olhar. O medo que eu sentia dele aumentava a cada vez que nos víamos. Certa vez eu voltava da padaria, estava sozinho, passei por ele com a cabaça baixa para evitar seus olhos. Ele encontrou outra forma de me provocar.

- Osmar, sua vó não sabe que você é uma mocinha mas eu sei, viu?

Eu acelerei os passos. Entrei em casa correndo, entreguei os pães para a minha vó e fui para o meu quarto. Lembro que naquele dia não quis assistir meu desenho preferido na TV e nem desenhei. Eu não entendia o que aquele homem estava falando. Mas, imagine que não fosse algo bom. Talvez minha vó não fosse gostar daquilo e ele parecia estar disposto a contar pra ela.

Os dias que vieram depois dessas palavras foram um verdadeiro pesadelo.

Ele começou a sussurrar coisas obscenas, que na época eu não entendia, mas que hoje fazem total sentido, sempre que eu passava. Isso me fez sentir medo dele e também de contar para a minha avó e ela pensar que era minha culpa. Aos poucos parei de brincar com Daniel e também com meus amigos na escola.

Meus dias, que antes eram cheios de risadas, lápis de cor e brincadeiras, passaram a ser vividos apenas no meu quarto. A professora notou minha mudança de comportamento. Minha vó acreditou que fosse uma fase, algo relacionado à idade. Eu segui me escondendo dos olhares dele enquanto tentava entender aquela acusação.

***

Já sabe, né? Não esquece de me contar nos comentários o que você está achando do livro e de deixar o seu voto (é só clicar na estrelinha). Quinta-feira, às 17 horas, tem capítulo novo!

Caso queira conversar diretamente comigo, sou @VicctoriaSilva em todas as redes sociais :)

O Azul do Meu PassadoWhere stories live. Discover now