Vinte e um

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No novo endereço vovó vivia uma rotina que poucas vezes incluía sair de casa ou fazer uma atividade física. Ela assistia TV, costurava e cozinhava. As duas atividades diminuíam de intensidade a cada dia. Eu demorei a perceber isso, pois comecei a trabalhar como empacotador no mercado para ajudar em casa. Quando me dei conta, ela já estava doente de novo.

Dessa vez não foi necessário ficar internada. Mas a médica foi pragmática: dona Beth tinha que tomar sol e procurar algo prazeroso para fazer.

Com o meu salário, comprei uma tela, um cavalete e vários pincéis e tintas em uma loja que ficava no caminho para casa. Sabia que o sonho da minha vó era trabalhar com pintura e decidi presenteá-la com algo que poderia ser prazeroso como a médica tinha dito. Levar tudo aquilo de bicicleta foi uma missão quase impossível, mas eu consegui e ela amou. Deu um sorriso enorme e pediu pra eu fazer o desenho que ela iria pintar: a rua sem saída com a casa azul bem no meio.

Depois da primeira arte, vovó pegou gosto pela coisa e se inscreveu numa aula gratuita de pintura que acontecia ali perto. Isso fez ela voltar a sair de dentro de casa, conhecer outras pessoas e até ganhar um dinheiro. Mas a saudade do nosso antigo endereço não passava e, passados dois anos, ela decidiu voltar.

A casa estava alugada para uma família. Com o dinheiro que eles pagavam, vovó pagava uma parte do aluguel do apartamento em que estávamos vivendo. O restante era completado com as economias dela. Quando eles entregaram as chaves, nós fizemos as malas e voltamos para aquela rua sem saída. Tínhamos esperança que agora as coisas seriam diferentes.

Mas os quase três anos não fizeram Osmar mudar em nada. Assim que descemos do táxi, demos de cara com ele. Estava em sua cadeira de rodas, no quintal, com a cabeça baixa. Vovó agradeceu o motorista e, automaticamente, o vizinho levantou a cabeça. Os olhos estavam vidrados em nós e com um brilho que nem de longe expressava felicidade.

Senti minhas pernas tremerem ao vê-lo novamente.

Ele sentiu meu medo, tenho certeza. E então me encarou dos pés à cabeça e deu uma risada quase imperceptível. Parece que estava rindo para ele mesmo, comemorando que eu estava de volta e ele poderia me atormentar novamente.

*

Apesar de o relógio do celular, quase sem bateria marcar quase 16 horas. Quando eu entrei no ônibus, senti como se tivesse vivido vários dias em um só. Voltei à casa onde cresci, vi o pai do Daniel e descobri o nome do meu pai e os talentos da minha mãe. Ainda assim era como se não tivesse feito tudo o que precisava. Ainda não era hora de voltar pra casa. Minha próxima parada era o cemitério onde a memória de vovó Beth poderia ser homenageada.

*

Vovó percebeu o que estava acontecendo e abriu o portão o mais rápido que pode. Entramos e vi em seus olhos a felicidade de estar de volta. Eu queria estar assim feliz também, mas as lembranças de Osmar atormentando a mim e a ela não me permitiam sorrir.

Fingi para que vovó não se sentisse mal.

Passamos aquele sábado arrumando a casa. Os móveis ainda estavam lá, pois tinham sido deixados para a família que alugou a casa e nós ficamos usando os do apartamento. Então só precisamos desencaixar nossas coisas, que não eram muitas e coloca-las no lugar. Além de limpar tudo, para que tivesse o cheirinho da casa da vó Beth. No domingo já estávamos comendo a tradicional macarronada, com refrigerante quase congelado e pavê de Bis. Depois assistimos a um filme e vovó me pediu para pendurar um quadro na parede da sala.

Depois de quase três anos, as coisas voltaram a ser como antes. E isso não incluiu Osmar, para a minha surpresa. Com o consentimento da minha vó, decidi continuar trabalhando no mercadinho do outro lado da cidade. Por isso, saia de casa bem cedinho de bicicleta. Ia para a escola e depois direto para o trabalho.

Vi meu vizinho poucas vezes naquele ano. Com o passar de alguns meses, percebi que também via minha vó cada vez menos e, por isso, decidi usar o dinheiro que eu estava economizando com ela. Em seu aniversário, a surpreendi com uma viagem para o Rio de Janeiro. Como meu salário não era grande coisa, só conseguimos ficar um fim de semana na 'Cidade Maravilhosa'. Mas foi tempo suficiente para conhecermos o Cristo Redentor e outras atrações turística. Foi nessa viagem que tirei a última foto com vovó. Ela estava com um chapéu enorme na cabeça, óculos de sol no rosto e segurava uma água de coco enquanto eu a abraçava e dava um beijo em seu rosto.

***

Oie, tudo bem? Espero que você e a sua família estejam bem e que tudo volte ao normal logo. Lembre-se de comentar, deixar o seu voto e (se puder) ficar em casa nessa quarentena :) 

O Azul do Meu PassadoWhere stories live. Discover now