Dezoito

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Parece que essa noite durou três dias. Eu pensei em mil coisas diferentes e chorei MUITO. O fato de não amanhecer nunca me deixou impaciente em um nível insuportável. Às 5h30 não aguentei mais. Tomei um banho gelado, para ver se a cara inchada ficava menos evidente, vesti uma roupa qualquer e pequei meus fones de ouvido.

Sai na ponta dos pés, como se houvesse alguma chance de Daniel acordar com o meu barulho. Se eu tivesse um carro, ia dirigir pra um lugar bem longe. Como não tenho, sai caminhando sem direção ou qualquer ideia do que estava fazendo.

Andei por horas sem parar. Longas caminhadas em linha reta e então virava em qualquer direção, para caminhar um pouco mais e virar novamente. Em um momento, já não fazia ideia de onde estava e não sabia percorrer o mesmo trajeto de volta. Mas tinha certeza sobre onde deveria estar. Meu celular estava no modo avião e, imaginei, o pessoal do trabalho deveria ter ligado em casa para questionar minha ausência. Daniel deveria estar preocupado. Como não queria dar grandes satisfações, usei um telefone público para ligar na editoria e avisar que não iria trabalhar. Não justifiquei minha ausência, pois não tive tempo de pensar em nenhuma mentira que fizesse sentido. E então segui viagem, de ônibus, até a minha próxima parada.

Foram 45 minutos de viagem em um intermunicipal. Para a minha sorte era cedo e, por isso, consegui ir sentado – algo raro durante o resto do dia. Desci do ônibus e segui o caminho andando. Se a minha memória não estiver errada, são menos de 10 minutos e estarei na casa de muro azul. O cenário das minhas memórias mais doces e também do meu maior pesadelo.

O cheiro de pão recém assado me tirou de trilho e eu parei rapidamente no mercadinho. Era o mesmo onde eu fazia as compras de domingo, mas com uma diferença: estava totalmente repaginado. O seo Laurinho, que levava as compras até a minha bicicleta, não estava mais por lá. No lugar dele, três moças devidamente uniformizadas e de cabelos no lugar pegam os produtos numa esteira automática. O caderninho foi substituído por computadores e os corredores estavam sinalizados de maneira bem profissional. Peguei dois pães, paguei e segui os saboreando. Pelo caminho, percebi que muitas coisas no bairro estavam diferentes e não apenas o mercadinho. As casas deram lugar a prédios e as ruas tinham muito mais carros do que eu me lembrava. Mas a casa 323 e 325 ainda estavam lá, intactas.

Não sei exatamente quais respostas fui buscar ali. Mas senti que não deveria estar em nenhum outro lugar do mundo. Sentei na calçada do prédio em frente e fiquei observando as duas casas. O muro azul agora estava revestido de pedras e a garagem tinha dois carros estacionados. A casa ao lado estava igual, ou melhor, destruída pelo tempo.

Será que os pais de Daniel ainda viviam ali?

O questionamento rondou minha mente e, logo em seguida, tive a resposta: um carro dobrou a esquina e era Osmar no volante. Não tive dúvidas de que era ele e também de que, assim como na infância, aquele era meu momento de ir embora. Voltei a caminhar, mas dessa vez com o meu próximo destino em mente: o teatro onde minha mãe e meu pai teriam se apaixonado.

Para chegar ao local, onde fui algumas vezes com excursões da escola e também com Daniel, foi necessário pegar outro ônibus. Dessa vez estava lotado e fui em pé e amassado por uma multidão de pessoas que não fugiram do trabalho como eu fiz. Desci no ponto que também era o destino da maioria dos passageiros e atravessei a avenida. O teatro estava bem na minha frente e, pela primeira vez, fiquei curioso para saber como era a voz da minha mãe. É claro que não encontraria a resposta ali, mas ainda assim subi a imponente escada e caminhei até o auditório. Um grupo ensaiava para um espetáculo quando eu sentei na última fileira de poltronas e assisti a mesma cena uma série de vezes. Então eles pararam para um intervalo e o um senhor veio conversar comigo.

- Vi que você assistiu boa parte do nosso ensaio e parecia bem interessado. Nós ainda estamos em fase de audição para alguns personagens secundários. Você tem interesse em participar? Antes que eu me esqueça, sou diretor do grupo, Nei.

- Não sou ator. Estava passando aqui em frente e decidi entrar, acabei ficando mais do que o planejado.

- Entendo.

O assunto estava encerrado, mas por algum motivo Nei continuou sentado ao meu lado. Um silêncio constrangedor se estabeleceu entre nós dois. Ele não parecia incomodado com esse fato e, por isso, fui eu quem tomei o impulso de voltar a falar.

- Acho que os meus pais se conheceram nesse teatro.

- Família de atores?

- Não sei exatamente, nunca os conheci.

- Veio aqui em busca de respostas?

- Na verdade acho que queria encontrar as perguntas certas.

- Funcionou?

- Eu assisti o ensaio imaginando como era o entrosamento deles em cena. Não sei se eram bons, se contracenavam bem ou se desistiram do sonho. Não sei nada. Encontrar perguntas é simples, tudo é dúvida quando o assunto são meus pais. E vai ser sempre assim...

- Como é mesmo o seu nome?

- Alberto.

- Olha, Alberto, eu trabalho nesse teatro há mais de 30 anos. Talvez possa te ajudar a encontrar respostas, desde que você tenha perguntas definidas.

O Azul do Meu PassadoWhere stories live. Discover now