Nove

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Fiquei sentando no sofá de frente para Daniel por horas. Ele me encarava esperando uma resposta, mas eu simplesmente não conseguia falar nada. Formulava uma frase em minha mente e já começava a chorar. Ficamos assim até que meu sofrimento fosse evidente ao ponto dele cancelar o interrogatório. Ganhei um abraço seguido de uma promessa de que continuaríamos aquele assunto no dia seguinte.

Decidi que dormiria ali mesmo, no sofá. Aliás, decidi que passaria aquela noite ali, pois obviamente não tive sono e fiquei repassando em minha mente tudo o que tinha acontecido - naquele 15 de setembro e também nas horas anteriores.

*

Eu e Daniel nos conhecemos no Casulo, um centro de acolhimento para pessoas LGBTQ+ em situação de vulnerabilidade social. Ele estava lá porque foi expulso meses antes, quando não aguentou mais os interrogatórios sobre a ausência de namoradas e assumiu sua sexualidade para o pai. Eu fui parar ali quando completei dezoito anos e fui convidado a continuar minha vida fora do orfanato onde vivia desde a morte da minha vó. Nós não nos falamos no primeiro momento. Mas, passados alguns dias ele veio puxar assunto comigo. A Joseane, uma das administradoras da casa, tinha comentado que adorava as minhas ilustrações e ele perguntou se poderia ver um dos meus desenhos. Eu disse que sim e nós passamos várias horas conversando sobre desenhos. Daniel não sabe desenhar, mas é apaixonado por livros e na época sonhava em estudar roteiro. Quando nos demos conta, já era madrugada e cada um foi para o seu quarto. Mas as conversas entraram em nossa rotina. Nos tornamos bons amigos.

Naquela época eu já estava trabalhando há um mês e tinha recebido um valor que estava depositado em juízo até eu alcançar a maior idade - referente às economias da minha vó e também à pensão que eu recebia desde que ela faleceu. Por isso, teria que me mudar o quanto antes e abrir vaga para outra pessoa. Encontrei uma república pertinho do Casulo e aluguei um quarto. Eu dormia sozinho, mas usava banheiro coletivo e o espaço era calculado para a cama (que já estava lá) e uma mala. Era só isso que eu tinha, então não foi um grande problema. O dia da mudança foi também o nosso primeiro beijo. Algumas semanas depois nos distanciamos, porque descobri quem era aquele Daniel. E, quase um ano depois, retomamos a nossa história.

E então chegamos aqui: no sofá de casa, de madrugada e com o fantasma do pior domingo da minha vida me assombrando.

Como era esperado, passei a noite em claro. Tomei mais café do que deveria, chorei mais do que imaginava ser possível e repensei o maldito domingo uma centena de vezes.

*

- Então você vai ficar sem bicicleta, moleque. Ou eu deveria chamar de moleca? Seja o que for, não sou seu empregado. Entre e pegue, se quiser.

As palavras dele fizeram meu coração disparar. Mas, eu senti que deveria entrar e passei por ele correndo. Peguei minha bicicleta e quando me virei para o portão encontrei meu vizinho em pé no vão por onde eu entrei. Ele me olhava de uma maneira que só entendi anos depois. Era um olhar que tinha ódio e nojo, mas também era perverso e doentio. Apesar disso, caminhei de volta como se nada tivesse acontecendo.

Ele não se moveu. Eu gelei. Olhei em volta e não tinha outra maneira de sair dali a não ser passando pelo portão onde o pai do Daniel estava parado. Pensei em gritar, mas tive medo dele inventar alguma mentira e minha vó ficar brava por eu ter entrado na casa sem ser convidado ou avisa-la. Decidi não pensar muito e não questionar aquela atitude. Apenas corri em direção a uma fresta no portão. Ele me apertou contra a parede para dificultar a minha passagem o máximo possível. Eu me espremia para passar quando ele agarrou o meu braço com força e me fez olhar em suas olhos - eles expressam uma repulsa inexplicável.

- Está doendo, me solta!! Foi você que mandou eu entrar.

- Pessoas como você não deveriam existir, moleque. Sai da minha casa e me faz um favor, nunca mais coloque os pés aqui dentro.

Quando cheguei em casa meu braço estava todo arranhado e sangrando, por conta do momento que me espremi na parede e também de como ele me apertou. Menti para a vovó que tinha caído enquanto brincava de bicicleta na rua de cima. Como eu vivia caindo de bicicleta, ela acreditou na história e me advertiu a andar mais devagar e com cuidado da próxima vez. Eu concordei com ela, mas a verdade é que só consegui pensar no que tinha acabado de ouvir do meu vizinho: pessoas como eu não deveriam existir. 

O Azul do Meu PassadoWhere stories live. Discover now