CAPÍTULO 5 - DISTÚRBIO

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O vigésimo Dia da Decisão está chegando, anunciou a TV. Já se aprontou para as festividades? Olha o que os Supermercados do Povo prepararam para você: alcatra ou contrafilé, o quilo....

Kristina espirrou de novo, limpando o nariz em um lenço. Alguns minutos depois, foi ao banheiro, sentindo frio ao se libertar da manta na qual passara o dia enrolada, apesar de o termômetro na parede do corredor marcar vinte e sete graus. Na volta, visitou o armário de bebidas na sala de jantar e depois a cozinha, para tomar um copo de uísque quente com açúcar mascavo, limão e cravos. O drinque sempre funcionava para ela contra os sintomas da gripe.

Voltou a se aconchegar no calor do sofá enquanto tomava a bebida e continuava a assistir a uma entrevista com os integrantes de uma banda famosinha. Findo o programa, desligou a televisão e pegou o romance investigativo que estava lendo. Uma das coisas de que mais gostava em casa naquele horário era o silêncio. Seus pais ainda estavam trabalhando: o pai na Universidade de Almar, ministrando suas aulas, e a mãe na montadora automobilística na qual era contadora. Eiden estava em seu quarto fazendo os deveres de casa. Kristina deveria ter acabado de chegar da faculdade, caso a indisposição não a tivesse obrigado a faltar às aulas do dia.

Estava mergulhada em um diálogo entre a protagonista e o vilão do livro quando seu celular tocou. Estranhou o nome de Briel na tela, já que o contato dos dois por celular costumava ser apenas via texto e porque ele estava, ultimamente, mais distante dela do que nunca.

— Alô?

— Oi, Kris. — O timbre dele foi mais grave do que o habitual.

— Oi. Que foi, aconteceu alguma coisa?

— Humm... aconteceu. Mas não se assusta, tá?...

— Claro, dizer isso é um ótimo jeito de não me assustar.

— Desculpa. É que... Tá, eu vou direto ao ponto. Seu pai acabou de ser preso.

Kristina se pôs de pé. Aquelas palavras não faziam sentido, mas eram fortes demais.

— Como assim foi preso? O que é que ele fez?

— Eu não sei direito. Minha primeira aula acabou agora. Eu tava no corredor quando os soldados chegaram. Eram quatro, armados. Ninguém sabia o que tava acontecendo, então a gente seguiu eles de longe. Aí eles entram na sala do Ronan e saem com ele algemado e gritando "eu sou fiel ao presidente" e "essa arma não é minha".

— Arma? O que é que tá acontecendo, Briel, cadê meu pai?

— Kris, tenta ficar calma. Eu acho que alguém forjou pra ele.

— Não, ninguém forjou! Por que é que alguém faria isso?! Eu quero falar com ele.

— Kris, os soldados levaram ele. Antes de responder qualquer coisa, põe isso na cabeça. Eu sei que é tudo muito estranho, mas põe isso na cabeça: alguém com certeza forjou uma situação e ele foi preso.

Kristina voltou a se sentar, levando a mão desocupada ao rosto e respirando fundo.

— Tá — disse ela. — Tá. Entendi.

— Ótimo.

— Então a acusação é porte de arma?

— Provavelmente. Também acho provável que isso venha ao ar. Geralmente quando é com alguém de influência eles transmitem, pra dar o exemplo, e o Ronan é professor de uma das maiores faculdades de Kailan.

— Aham.

— Agora são... quase oito horas. O Jornal começa em meia hora.

— Aham — repetiu ela, ligando a televisão no canal 4, que ainda emitia um capítulo de novela.

— Kris... eu te ligo mais tarde.

Não! quase exclamou. Não queria que Briel parasse de falar com ela naquele momento. Na realidade, queria que ele fosse para lá e se sentasse ao seu lado. Alguns meses atrás, não teria dúvidas de que ele faria isso, e, se por algum motivo não fizesse, ela lhe pediria.

— Tá. Até mais — disse ela, desligando o telefone.

Foi quando ouviu passos descerem as escadas, e logo Eiden se encontrava na sala com ela. Kristina sussurrou um palavrão. Não queria que o garoto tivesse ouvido a novidade.

— Que foi que aconteceu com o papai?

— É complicado, Eiden. — Buscou palavras para explicar do jeito mais simples possível. — Alguém acha que nosso pai fez uma coisa errada.

— E ele fez?

— Não, claro que não. — Ela não conseguia esconder a impaciência na voz. — Vai pegar um copo de água pra mim, por favor, enquanto eu ligo pra nossa mãe. Depois vai pro seu quarto.

Eiden esboçou um ar contrariado, mas obedeceu ao pedido. Kristina teve que discar o número duas vezes, não tendo sido atendida na primeira. Até que:

— Eu tava no meio duma conversa importante e meu expediente já até acabou. O que você tem de tão urgente pra falar que não pode esperar eu chegar em casa?

— Meu pai foi preso.

Kristina contou à mãe sobre a recém-ligação de Briel. Pouco depois das oito e meia, a mulher estava em casa, sentada no sofá com ambos os filhos ("não adianta querer esconder o mundo do teu irmão, Kristina"), assistindo à edição daquele dia do Jornal de Kailan. A notícia veio como um balde de aflição derramado lentamente:

Professor é preso em Almar, região metropolitana de Orlestan, na Cabeça, por planejar atentado terrorista. Ronan Alfren, professor de física na Universidade de Almar, foi denunciado por uma fonte, que quis se manter no anonimato, por conspirar contra a federação de Kailan. A fonte, após ouvir o professor Ronan conversar com alunos e professores sobre um plano para um ataque terrorista, não hesitou em ir aos oficiais e denunciar o caso. Os soldados investigaram ainda há pouco a sala do professor e encontraram um revólver em sua gaveta. O professor Ronan foi preso por conspiração, porte de arma de fogo e intuito terrorista. Ainda não se sabe a identidade dos outros professores e alunos envolvidos, mas a Divisão Investigativa do exército trabalha para averiguar o caso.

A seguir, veja como estão os preparativos para o Dia da Decisão...

Era aquilo. Enquanto Eiden fazia perguntas inacabáveis à mãe, uma Kristina boquiaberta retrocedeu a notícia. Atentado terrorista... A fonte, após ouvir o professor Ronan conversar... um revólver em sua gaveta... Aparentemente, alguém na Universidade de Almar queria seu pai preso. Claro que as acusações eram falsas. E Kristina tinha não só a vontade como a obrigação de descobrir quem estava por trás daquele esquema.

AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PEITOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora