CAPÍTULO 7 - OS INCONFORMADOS

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Já estava claro e não chovia mais. Deitada, Kristina encarava o teto amarelo do quarto, mas o que via, ouvia e sentia ainda eram fragmentos de duas horas atrás: o barulho da chuva, o brilho momentâneo de um relâmpago, uma mão na sua, um corpo no seu e os suspiros segredados para a madrugada.

Ele partira imediatamente ao fim do toque de recolher. O papel com o endereço repousava dentro do armário de Kristina. Era um hotel na Rua General Erson, 302, Centro, Melkan, Fígado. Ela já o sabia de cor, pelo número de vezes que o lera. A única pessoa que eu deixo ir atrás de mim é você. Contudo, o que aconteceria se ela fosse? E se ficasse? Deveria ter pressionado Briel a lhe contar todo o plano, se é que tinha planejado algo a longo prazo. Por enquanto ele era um fugitivo de um grupo armado, mas por quanto tempo isso iria se sustentar? E, enquanto isso, o que aconteceria com Ronan na cadeia? Ele não era o pai dos sonhos de Kristina, mas era seu pai de qualquer jeito e ela não queria perdê-lo. Mesmo que ele nunca tivesse sido suficientemente impositivo a ponto contar para a filha quem era de verdade. Se tivesse, tudo teria sido diferente. Kristina teria experimentado pelo menos uma vez a terra firme de uma ilhota, ao invés de viver sempre à deriva entre consanguíneos que a calavam e a abandonavam no lugar de ampará-la como uma verdadeira família deveria fazer.

Kristina se virou de lado na cama, desconfortável. Seus ossos doíam com o peso de imaginar há quanto tempo era assim. Desde quando Ronan lutava contra a ditadura? Se Briel sabia, deveria ter contado a Kristina em algum momento. Ou melhor, no momento em que descobrira. E quando Briel entrara na luta armada? Aquilo tinha alguma coisa a ver com o concurso do ETeCK? Tinha alguma coisa a ver com Lorena? Se Briel amava mesmo Kristina, de onde tirara Lorena?

Kristina conhecia Briel havia quase nove anos, desde que ele se mudara para sua vizinhança. Certas vezes, já idealizara ter outro tipo de relação com ele, mas isso era inevitável para uma garota que crescera ao lado de um garoto da mesma faixa etária. Sempre foram apenas fantasias distrativas. Nunca uma vontade, nunca um interesse, nunca algo que ela aceitaria se ele pedisse. E, principalmente, nunca fora amor. Até que, poucas horas atrás, em um sofá de uma sala escura, toda aquela compreensão tinha se embaralhado.

Quando não suportou mais permanecer deitada e dentro de sua cabeça, Kristina foi ao andar de baixo, onde encontrou sua mãe sentada à mesa da cozinha com uma taça e uma garrafa de bebida.

— A essa hora? — disse a garota.

— É só vinho branco. Teu pai me deu esse de presente.

— Meu pai. — Como ela daria voz à sua pergunta sem causar uma guerra em casa? — As acusações contra ele... O que você acha?

— Como assim o que eu acho? Cadê teu juízo? É claro que é mentira.

Kristina engoliu em seco.

— Se fosse verdade... você ia saber? Você ia me dizer?

Laisa olhou demoradamente a garota que estava em pé ao seu lado. Então, pegou a mão dela. Kristina estava tão desacostumada àquilo que quase se sentiu desconfortável.

— Teu pai é inocente e tá na mão da justiça, Kristina. — E levantou a garrafa de vinho, oferecendo.

Se ele estava na mão da justiça, Kristina precisaria de algo mais forte que vinho. Ela se soltou da mãe e saiu da cozinha para a sala de jantar. No armário de bebidas, casou um copo pequeno com uma garrafa de vodca e celebrou o matrimônio. Antes da segunda dose, o interfone tocou.

— Tá esperando alguém? — Laisa gritou.

— Não.

Kristina deixou as coisas sobre a mesa de jantar e foi atender.

AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PEITOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora