2. Qualquer coisa que faça não pensar

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"Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar."

(Bernardo Soares/Fernando Pessoa)

Conto os minutos para o fim do expediente. Respiro aliviada quando o ouço o rouxinol cantando através das paredes. Não consigo entender por que há um relógio cuco, que imita o som dos pássaros, bem no meio da recepção da unidade neonatal. Talvez tenha sido a brilhante ideia de alguém que queria humanizar esse ambiente quase estéril. O mesmo brilhantismo de quem achou que adiantar as horas faria o final do expediente chegar mais rápido.

Eu sei que ainda não são exatamente seis da tarde, basta conferir no meu celular. A culpa disso é de Valentina, minha estagiária. Ela aproveitou as escadas do técnico do ar-condicionado, em um dia de manutenção, para mexer nos ponteiros. E acha que eu não sei disso.

O anúncio do final de mais um dia de trabalho confirma o que minha intuição e, todos os sinais tentaram avisar: hoje não é o meu dia.

A única coisa que quero agora é a minha cama e que tudo isso acabe.

— Amanda, eu já estou indo — Valentina aparece com seus cachos arrumados na porta semiaberta. Ela sabe que eu sei que ela mata os quinze minutos finais do estágio, mas hoje posso relevar. A tarde não foi boa para ninguém aqui na unidade.

Perdemos uma das estrelinhas: o bebê Brad.

Mel, uma das pediatras e, por acaso, a minha melhor amiga, sempre chama os nossos bebês de estrelinhas, mas, desde a primeira vez que ouviu, Valentina entendeu que eram estrelinhas de cinema. Por isso, ela batiza todos os prematuros com o nome de uma celebridade. O bebê Brad recebeu esse nome por causa do cabelo loiro e dos olhos claros.

José, o verdadeiro nome do bebê Brad era pequeno e frágil demais para uma cirurgia. Ele nasceu com vinte e cinco semanas e pulmões subdesenvolvidos. Eu tinha um atendimento marcado com a mãe dele na segunda, mas acabei de encaminhá-la para a psicologia. Ela só tem dezessete anos.

Em momentos como esse, eu simplesmente odeio o meu trabalho.

— Ok, meu bem — respondo cansada — Te vejo na segunda.

— Ei, Dica... — Imagino a minha cara de desolação só pelo tom dela — Tenho certeza de que o bebê Brad vai fazer um filme bem lindo lá em cima — Ela aponta para o forro da minha sala.

A realidade da unidade neonatal é basicamente essa, acostumar com despedidas o tempo todo. Até mesmo quando as estrelinhas vão embora com suas mães é triste. Fico imaginando como as enfermeiras se sentem. Não que eu queira que eles continuem aqui, é tão bonito ver quando eles estão saudáveis e prontos para serem bebês normais como todos os outros. Mas vê-los se despedindo é como ter que encerrar um ciclo e não eu sou boa nisso.

Normalmente eu não fico com esse bolo na garganta e essa dificuldade para respirar, mas não é sempre que tenho que lidar com tantas coisas ao mesmo tempo. Esses sentimentos misturados têm um gosto tão estranho.

— Desculpe, o meu dia está péssimo — digo com dificuldade.

Valentina consulta o relógio no pulso e se despede na correria de sempre. Não sei o que ela faz depois que sai daqui para ter tanta pressa em chegar. Não é a faculdade, porque eu sei que ela estuda pela manhã.

Inevitavelmente, volto a pensar no encontro no elevador. Ele parecia bem, apesar de tudo. Quero dizer, a voz dele parecia, porque eu não fiquei encarando.

Isso só mostra o quanto sou patética. Os anos se passaram e ele retomou a vida, enquanto eu ainda pareço perdida.

Escuto leves batidinhas na porta, mas estou abalada demais para mandar quem está batendo entrar, deve ser Mel ou Johnny. A julgar pelo horário, Rosa já deve ter arranjado um jeito de ir embora.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Where stories live. Discover now