3. Efeitos duradouros

54.5K 4K 811
                                    

"Durante muito tempo, o afeto e o arrependimento enevoaram todas as alegrias da juventude, e a perda precoce do viço e da energia foi o efeito duradouro."

(Jane Austen)

Por mais que eu odeie festas de aniversário, não posso brigar com Alicia por causa da surpresa. Também não posso deixar de agradecer por ela ter lembrado, aliás, uma das poucas pessoas que lembrou. Seu sorriso de dentes de leite talvez seja o presente mais lindo nesse dia que nunca termina. E o parabéns com o ene estilizado ficou charmoso.

Abraço-a, beijo sua testa em agradecimento e pergunto onde está sua mãe.

Jogo minha bolsa no sofá e flagro Monstrinha na cozinha. Toda vez que a vejo não consigo deixar de notar como as nossas semelhanças físicas nos fazem tão diferentes: temos os mesmos olhos castanhos com pontinhos azuis e o mesmo nariz, mas todo o resto é diferente. Elisa é oito anos mais velha e tem essa cara de mãe que frequenta a academia cinco vezes por semana, de fato ela faz isso. Além do seu cabelo curto ondulado que a deixa maravilhosamente exuberante. Eu até tentei me inspirar nela no meu último corte, mas o máximo que consegui foi o visual de uma mocinha que acabou de entrar na universidade.

Ela está lavando a louça na pia, em umas das poucas ocasiões em que enxergo vantagens por tê-la aqui. Eu amo sua mania de limpeza.

- Alicia - repreende Monstrinha. Ela nunca faz escândalo, mas o jeito com que eleva a voz é muito pior - O que eu disse sobre o aniversário da tia Dica?

Olho para ela sem acreditar. O mundo acordou de cabeça para baixo e ninguém me avisou. Só pode ser isso. É a única justificativa para Monstrinha estar me defendendo. Tudo bem, eu estou exagerando, ela sempre me defendeu, mas não sem antes fazer com que eu me sinta a pessoa mais miserável do mundo.

- Mas o faca tá no oito, mamãe - Lili aponta o dedinho para o meu relógio antigo na parede. Uma relíquia encontrada na internet por uma bagatela. Sinto orgulho todas as vezes que consulto as horas - Olha lá!

Ela não está errada, o um dos ponteiros está realmente no número oito. Não consigo acreditar que faltam apenas vinte minutos para as oito da noite. Quando a tragédia vai chegar ao ponto alto, porque eu tenho certeza de que meu acúmulo de azar ainda não é suficiente.

- Eu falei que era o garfo, amor, e não a faca - responde Monstrinha, com seu queixo erguido. É esse tom de voz que me deixa nervosa, eu preferia que ela estivesse berrando.

Lili olha para o papel desenhado e me olha em seguida. Tenho certeza de que ela está pensando em uma boa resposta para dar a mãe. Alicia nunca fica satisfeita até ser a última a falar. Mas ela ri e sai correndo em direção ao quarto, meu antigo quarto de visitas que agora se parece com uma loja de brinquedos.

- Deixa ela em paz, Monstrinha - digo cansada.

- O que aconteceu para te deixar com essa cara? - pergunta ela agarrando um pano de prato. Eu sabia que essa seria a primeira pergunta que ela faria quando me visse.

- O que acontece sempre no dia de hoje - desconverso, mesmo sabendo que ela vai descobrir de qualquer jeito - Eu não tive um dia bom.

Elisa me encara como se eu tivesse acabado de mentir no meio de um interrogatório. É o suficiente. Agora ela só vai sossegar quando eu contar tudo. Monstrinha deveria pensar em fazer carreira na polícia, ela é praticamente um polígrafo humano.

- Essa é a última caixa, mãe - reclama Isadora. Viro o rosto e encontro-a contrariada, segurando uma caixa de papelão. Tenho uma coleção delas na área de serviço, com todas as quinquilharias que não posso jogar fora.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora