2. Qualquer coisa que faça não pensar - Lado B

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Eu estive aqui no Hospital Escola por duas vezes desde que terminei o internato. Há dois anos com minha avó, que acompanhava Adélia, a mesma que é o motivo da briga dela com Elias Giordanno; ela estava no meio do protocolo de quimioterapia. Câncer de mama estágio 2. Cora me pediu para conversar com o médico dela. Eu era um recém-formado, iniciando a residência em clínica médica e achava que sabia alguma coisa para discutir com um oncologista que tinha mais do que a minha idade de experiência.

Eu era um idiota, mas quem olha o passado e não tem a sensação de que fez um monte de merda?

A outra foi num plantão, o ano passado. Nem sempre a bolsa de residência paga as contas.

Encaro a austeridade dos prédios, quando desço do carro. Quatro torres relativamente pequenas, quando comparadas ao complexo médico-hospitalar que é o Santa Marcelina. A poluição e a chuva continuam estragando as fachadas, talvez melhore com uma pintura nova. Olhando desse jeito, se parece com um recorte das minhas lembranças. Às vezes, penso se não devia ter continuado aqui. Eu sempre vi o Hospital Escola como uma extensão de casa, parte de mim ficava aqui, todos os dias, nas longas doze horas de internato. Mas acabei optando pelo outro hospital conveniado com a universidade. O Santa Marcelina oferecia mais vagas e eu precisava de espaço. Espaço e distância de tudo o que me fazia lembrar Amanda, ainda que ela nem estivesse aqui. Não fisicamente. Me tornar um médico se tornou a minha maior prioridade, eu não podia deixar isso se transformar em mais uma ruína na minha vida.

A recepção de triagem do térreo continua com os estranhos pufes verde e cinza. Nunca entendi o motivo para eles ficarem no meio do saguão. Como se tivessem sido entregues pela transportadora e alguém se esqueceu de os levar para seu devido lugar. Mel diz que é proposital, peça decorativa. Mas eu realmente não entendo. Obviamente, ninguém está sentado neles. Um grupo de pessoas disputa espaço nas mesas de atendimento do lado direito. As recepcionistas se dividem entre ouvir as pessoas e atender os telefones insistentes. Continuam os mesmos. Tenho certeza de que o típico mau humor não mudou também. O mesmo para os arranjos de flores plásticas, lilás e cor-de-rosa.

Atravesso o saguão e viro à esquerda, na direção das escadas. Se a pintura do lado de fora continua do mesmo jeito de anos atrás, não tenho dúvidas de que os elevadores ainda enguiçam e, misteriosamente, continuam parando nos mesmos andares. Empurro as portas corta-fogo e subo os andares de dois em dois degraus.

Na entrada do auditório uma longa mesa arrumada como arranjos de flores recebe os participantes.

— O Painel de abertura já começou — sinaliza a garota do credenciamento quando me vê se aproximar.

Agradeço e escrevo o meu nome no crachá. Depois, ela me entrega um formulário. Se o velho Henrique é algum dos homenageados, não haverá ninguém para se levantar quando ele for chamado e aplaudido.

— Henrique — alguém me chama.

Ergo os olhos da prancheta e lá está ele: Elias Giordanno.

Eu sempre o imaginei como alguém que consegue tudo o que quer. Me lembro da sua figura canastrona em muitos natais, ele era boa pinta demais para ser o Papai Noel. Muito embora o velho Henrique nunca delegue a função. Sempre sorridente e despreocupado, isso o fazia parecer mais jovem. Também costumava comparar o esportivo importado dele e o sedã modesto do meu avô. Ele já não é mais o mesmo. Cora diz que é uma consequência por abandonar Adélia, mas vai além disso. Olhando-o ali, conversando com alguém no celular, percebo que sua pele queimada de sol parece muito mais enrugada e meio cinzenta. Seus cabelos se limitam a uma faixa que vai da metade da cabeça até a nuca. Ele sofreu um AVC há oito meses. Os movimentos dos membros do lado esquerdo do corpo foram afetados pela paresia e isso agora lhe exige o uso de uma bengala. O jeito com que ele se apoia faz a rigidez muscular parecer um pouco mais leve do que na última vez que nos vimos, há dois meses. Sinal de que a reabilitação está dando bons resultados.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Where stories live. Discover now