1. Não é o meu dia - Lado B

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Uma folga na véspera do feriado é um acontecimento e tanto, mas também estar de fora da escala de plantão do feriado é tão improvável quanto acertar sozinho os números da loteria, se você é um médico residente no primeiro ano. Lorena, uma das preceptoras do programa me disse exatamente isso quando sai do hospital hoje cedo. Eu poderia me considerar muito sortudo e usar todos os benefícios disso a meu favor, mas faço justamente o contrário. São oito e quarenta da manhã, segundo o rádio relógio em cima do criado-mudo, isso significa que tive quase uma hora inteira de sono.

Se eu pudesse voltar no tempo agora, a primeira coisa que faria seria dizer ao meu avô que colocar os pés num hospital no dia da minha folga estava fora de cogitação. Que ele poderia me pedir qualquer coisa, menos isso. Recusar o bilhete premiado da loteria não é uma opção. O problema é que não consigo dizer não ao velho Henrique, por isso concordei em ir ao Seminário de Genética Médica, no Hospital Escola em seu lugar. Justo no único dia em que eu poderia recarregar as baterias.

Essa coisa de viagem no tempo me faz pensar em algo que também seria remediado: a conversa com Carolina sobre a ideia dela de morarmos juntos. Adiar isso tem me deixado numa situação cada vez pior. Se eu pudesse voltar, arranjaria um jeito de acabar com o assunto. Sendo honesto com ela ou não tão honesto, mas preciso.

A última vez que tocamos no assunto foi ontem, no intervalo entre um atendimento e outro, quando ela ligou:

— Oi. Minha aula é amanhã — Ela disse empolgada. A voz dela sempre soa mais fina, quando ela fica empolgada. A faz parecer uma menininha.

— Eu sei — respondi mordendo metade de um sanduíche de frango com maionese. Ela falou sobre a nova turma por todos os dias do último mês. — Vai dar tudo certo, as meninas vão amar você.

— E se os pais não gostarem?

— As crianças são as melhores pessoas para convencer os pais — respondi com a boca cheia de comida.

— Henrique! — Carol reclamou, mas era capaz de ver o sorriso do outro lado da linha — Sabe no que eu estava pensando? A aula é aberta, então você podia ir também, se não tiver algo mais importante para fazer.

Quase derrubei o telefone e o meu jantar, quando não consegui puxar o papel filme preso na metade do pão.

— Se é importante que eu vá, não tenho nada mais importante do que isso.

Justo no dia da minha folga.

Desisti e puxei o plástico com os dentes.

— É às 09h30, não é?

Ela suspirou do outro lado da linha e eu cuspi na lixeira de metal.

— Tem certeza de que não tem outra coisa? É a sua folga...— Ela ponderou, vacilando — Isso é besteira, entende? É só a primeira aula e você pode ir outro...

Conheci Carol no casamento da professora de dança dos meus avós. Eu era o acompanhante de vó Cora e, segundo ela, todo mundo do estúdio de dança precisava me conhecer. No meio de tantos rostos e cumprimentos, fui apresentado à professora-assistente das turmas do ballet infantil. Ela parecia um anjo ou o mais próximo de uma visão sobrenatural. Eu gostei tanto daquilo, da leveza, do desarme. Cabelos soltos, olhos bonitos e batom vermelho. Parecia outra versão da bailarina tão dedicada que vi se apresentando no espetáculo de Natal. Carolina também tinha o sorriso honesto e muita simpatia. Ela ficou na nossa mesa durante a festa e eu não consegui tirar os olhos dela.

Em muito tempo, eu não me sentia tão fascinado por alguém. Desde Amanda.

Depois de muitas taças de champanhe, eu tinha planos muito ambiciosos sobre como aquela noite terminaria e ela também, depois que sugeriu que eu deixasse vó Cora em casa, primeiro.

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora