14. Pouco a pouco

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"Enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem?"
(Caio Fernando Abreu)

Eu não precisava ter feito uma cena.

Me sinto um pouquinho envergonhada agora. Acho que toda a adrenalina do momento se dissipou e, finalmente, eu posso pensar de maneira com mais calma. Ok, talvez essa Mel ruiva e alternativa não estivesse mesmo dando em cima de Henrique. Pode ter sido apenas uma troca de gentilezas e, em vez de mostrar que sou uma pessoa adulta e madura, eu banco a namorada paranoica e possessiva na frente de todo mundo.

Você nunca melhora, Dica!

Henrique não entendeu o que eu fiz, mas honestamente quem entendeu? Nem eu estou me entendendo nesse exato momento. E não sei se quero que alguém entenda. Movo as paletas de saída do ar-condicionado, enquanto espero que Henrique se decidir se vamos continuar conversando. Se ele decidir continuar o assunto da minha suposta gravidez, eu prefiro continuar ouvindo apenas o barulho do carro se movendo.

Eu gosto desse silêncio. Aqui somos Dica e Henrique, juntos na mesma frase, com a mesma interpretação. Não somos Dica arrependida e Henrique machucado. Ou Dica que foge o tempo todo de Henrique.

Uma vez há três anos, bebi uma garrafa de vodca inteirinha no dia do nosso aniversário e, quando não estava com a cara enfiada na privada, só conseguia pensar no que aconteceria se eu encontrasse Henrique. O que eu diria a ele, se tivesse alguma coisa para dizer?

Curiosamente, eu estou aqui.

Na minha imaginação alcoolizada, nós faríamos como nos filmes. Nos esbarraríamos no meio da rua. Ele me convidaria para almoçar e eu recusaria, então a oferta mudaria para um café no final da tarde e eu aceitaria desejando que algo acontecesse para impedir o reencontro. Só que no fim eu acabaria aparecendo, depois de me atrasar por dez minutos, porque estaria indecisa entre tomar ou não o elevador. Ao final de duas horas e meia de conversas e risadas, o garçom apareceria, na clara intenção de dizer que deveríamos consumir ou liberar a mesa. Eu estaria tão encantada pelas histórias que Henrique me contaria que nem perceberia que já estaria tarde. Ele conversaria sobre as dificuldades da residência e de fazer sua noiva entender o motivo de ficar tão ausente, mas me faria entender que está feliz. E durante a despedida, arriscaríamos um beijo no rosto que se alongaria pelo canto dos lábios. Sorriríamos ao mesmo tempo, constrangidos e tudo ficaria...

- Vai me contar agora o que está acontecendo, Dica? - Henrique interrompe o final do meu próprio conto de fadas.

Estamos parados em um sinal amarelo que em um piscar de olhos se torna vermelho. Só então me dou conta de que estamos no carro dele e eu não faço a menor ideia de onde deixei o carro de Monstrinha. Espero que Samuel o tenha trazido de volta, porque Elisa vai surtar quando souber que perdi o carro dela.

Espero que Samuel saiba dirigir. Eu cruzo com ele todas as manhãs descendo o elevador, mas nunca de fato o encontrei na garagem, saindo do carro, por exemplo.

- Dica?

- Não estou me sentindo muito bem - confesso a ele, encarando o semáforo. Imploro mentalmente para que fique verde, mas me sinto idiota apenas por pensar nisso. Outra fuga - Talvez eu não esteja sendo eu mesma ultimamente

- Até Stellinha notou - Henrique ri franzindo o cenho.

Exato! Até o cachorro sabe que sou a Amanda falsa

- Eu sei que você está passando por muitas coisas, mas faremos dar certo. Temos Monstrinha para nos ajudar, se ela conseguiu, então temos grandes chances - Ele continua e tira a mão direita da caixa de marcha e aperta a minha sobre os meus joelhos - Eu me senti enganado quando não me contou sobre a gravidez, mas acho que o mais importante é estarmos felizes com o nosso bebê. Sabe que eu passei a ùltima hora imaginando como ele seria?

Com tequila e com amor [Concluído] [VENCEDOR DO WATTYS 2017]Where stories live. Discover now