Capitulo Um

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De todos os meus familiares, o tio Otavio era, com certeza, um dos mais queridos por mim quando criança. Esguio e sorridente, do alto de sua vida adulta, ele era o único que parava para assistir desenhos animados ao meu lado. Sempre fora o mais brincalhão da família, gostava de fazer mágicas fajutas nos jantares de domingo. Nunca chamava sua noiva pelo nome, chamava de "Docinho de batata doce", entre outros apelidos.

Costumava, também, dizer que considerava a televisão muito educativa: "Sempre que alguém liga uma, eu vou para o outro cômodo e leio um livro".

Eu nunca o vira triste, cabisbaixo ou nem mesmo bravo.

Além de tudo, tínhamos uma ligação especial. Ele era mais do que um tio para mim, era um amigo, uma pessoa para ser admirada.

Certo dia, minha mãe desligou o telefone com o olhar vago. Havia acabado de receber notícias sobre o tio que andara meio sumido. Ela nada disse, ficou quieta por horas, sentada no sofá sem olhar pra lugar nenhum. Fiquei preocupado.

Quem foi conversar comigo foi meu pai. Eu tinha doze anos na época e ele já me tratava como adulto. Sempre gostei disso.

Sentou ao meu lado na cama e falou sem rodeios, "seu tio Otávio está doente. Uma coisa chamada câncer no pulmão".

Mesmo depois do diagnóstico, custou algum tempo para ele largar o tabaco: "Fiquei tão preocupado em saber que tenho câncer no pulmão, que tive que acender um cigarro para me acalmar", alegou.

As sessões de quimioterapia e outras medidas tomadas pelos médicos ajudaram a retardar a evolução da doença por algum tempo. Logo, se tornaram ineficazes e ele fora internado. O seu caso só se agravou, chegando ao ponto de os médicos anunciarem que já haviam feito tudo o que estava ao seu alcance e que agora só nos restava orar. Foi a primeira vez que uma notícia sobre o brincalhão Otávio fez a sua família chorar ao invés de rir.

Fui visitá-lo. Encontrei o mesmo tio Otávio, sorridente e brincalhão, porém, fraco, respirando com dificuldade por meio de aparelhos.

Conversamos durante horas sobre tudo, apesar de ter certa dificuldade para falar e não conseguir mais dar risada, ele continuava a fazer piadas com as situações. No final da tarde, me pediu para abrir a janela e eu obedeci, revelando a visão do sol se pondo.

- Olha só que coisa linda é isso, Ick - exclamou ele, admirado. - Eu deveria ter reparado nisso quando tinha mais anos de vida, assim poderia parar todas as tardes para apreciar o pôr do sol.

- Tio! Não fala assim! Você vai ficar bem e...

- Para com isso, Ick. - ele estava muito calmo. - Acho que pelo menos nós dois poderíamos parar de fingir, não é mesmo? Um homem sabe quando está morrendo, embora poucos tenham coragem de assumir essa verdade quando estão frente a ela. - Encara o crepúsculo novamente. - Sabe, Ick, eu não tenho medo da morte. Acho que ela tem que chegar na hora em que tem que chegar. Em suma, vivi uma vida muito boa. - Seus olhos me encontram. - Vou te contar uma coisa, um dia você irá acordar e perceber que está velho e sem os dentes, isso, é claro, pressupondo que você terá mais sorte do que eu. O que importa é que nos momentos finais de sua vida você irá olhar para trás e reparar nela pela primeira vez.

- Nela quem?

- Na vida. Você irá reparar na vida pela primeira vez. Você irá lembrar-se dos momentos, das escolhas e de tudo mais.

- Eu acho...

- Haverá um momento na sua vida (e eu sei que vai, pois acontece com todos) em que você terá que decidir entre o mais seguro ou o que o seu coração quer. As pessoas tendem a escolher o mais seguro por motivos óbvios, não é mesmo? Assim como o seu pai. Ele queria ser um nadador profissional, parou e pensou no quanto isso poderia ser difícil e hoje não passa de um chato de galochas.

Tio Otávio parece ter dificuldades para respirar. Parou de falar por um minuto, tossiu alto e ruidosamente antes de continuar:

- O problema disso é que quando ele ficar velhinho, irá olhar para trás e se fazer sempre a mesma pergunta: E se?

Meu tio costumava falar bobagens, mas dessa vez eu conseguia enxergar uma pontada de sentido em tudo aquilo.

- E esses "E se" poderão te matar! Não deixe que os "E se" entrem em sua vida, ou você estará destinado a sentir uma pequena agonia escondida para todo o sempre.

Depois de um tempo, uma enfermeira apareceu à porta avisando que o horário de visita havia terminado. Aproximei-me de Otávio e me despedi.

- Você vai ficar bem, tio...

- É como Bukowski disse. - Bukowski era o seu escritor favorito. - Eu não me importo se vou viver ou não, só quero me livrar da droga desses aparelhos.

- Eu não creio que Bukowski tenha dito isso.

- Ah não? Bem, para mim ao menos, parece algo que ele diria.

Eu deixei escapar uma risadinha.

- Tchau, tio.

- Tchau, Ick.

Depois de um mês, recebi a notícia de que o seu organismo finalmente havia cedido. Uma notícia triste, mas recebida com serenidade.

Tio Otávio deixou saudades, mas acima de tudo, me deixou uma lição sobre levar a vida levemente, sobre sorrir até o seu último dia.

Mal ele sabia que o maior dos seus conselhos, na verdade, fora dado nesse momento de conversa despropositada. Nem eu, nem ele, sabíamos que aquela conversa fora a conversa que ajudaria a moldar a minha personalidade.

***

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A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Där berättelser lever. Upptäck nu