Capítulo Dezoito

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Se o meu filho saísse de casa dizendo que iria a um festival musical e só voltasse no dia seguinte, encharcado e com os olhos inchados, eu provavelmente surtaria. Porém, minha mãe parecia bastante calma, sentada na minha frente, com uma expressão séria no rosto.

A chuva insistia em cair, com gotas do tamanho de balas batendo repetidamente nas janelas das casas. O bairro todo estava sem energia elétrica e a minha também não andava das mais fortes.

Eu e minha mãe ficamos em silêncio de frente para o outro por cinco minutos inteiros. Eu tinha a mínima vontade de falar nada, ouvir o sermão que ela tinha a dizer e subir para o meu quarto já era o bastante.

— Onde você estava?

Poucas palavras, uma pergunta simples que eu não poderia responder nem mesmo se quisesse. Como iria explicar tudo o que aconteceu? Ela nem ao menos sabia da existência de Samaris. Eu não dividi isso com ninguém. Aquela carta é a única prova concreta de que Samaris não existiu apenas na minha mente.

— Eu vou perguntar mais uma vez. Onde você passou a noite?

O silêncio só era quebrado pelas pancadas de chuva na janela e os trovões frequentes.

— ICK! — minha mãe elevou levemente o tom de voz dessa vez. — Me diz, logo! Onde você estava, moleque?

Mais silêncio. Foi então que aconteceu algo que só acontece em raros momentos entre mãe e filho. Ela olhou nos meus olhos e eu senti que não estava mais nervosa comigo. Minha mãe percebeu que não deveria fazer mais nenhuma pergunta.

— Sobe para o seu quarto — disse ela num tom mais sereno, olhando para o chão.

— O quê?

— Você entendeu — ela se apoiou no encosto da cadeira, esfregou bem os olhos aparentando cansaço.

Quando eu tinha cinco anos de idade, ganhei uma bicicleta sem as rodas de apoio. Minha mãe a guardou nos fundos da casa e me disse que era proibido andar na bicicleta até que comprássemos as rodinhas. Eu não me aguentei de vontade, roubei a bicicleta e me arrisquei no asfalto da rua. Obviamente me estatelei no chão muito antes de completar uma pedalada decente, me ralei e me cortei com o tombo, de um jeito que toda a vontade de andar logo se esvaiu e voltei para a casa. Quando apareci na cozinha, minha mãe se virou e me viu completamente ralado, coberto de terra e de sangue:

— Que foi isso, filho? — disse ela preocupada, andando na minha direção.

— Nada. — respondi. Sentia vergonha por ter pegado a bicicleta escondido e mais ainda por ter caído tão rápido.

— Como nada?

— Nada, mãe.

— Tá doendo? — ela perguntou baixinho.

— Não, mãe. — Estava doendo. Eu segurava o choro com todas as minhas forças.

Minha mãe se ajoelhou, de forma a ficar da minha altura e olhou nos meus olhos. Este olhar se repetiu. De alguma forma, as duas situações são bem parecidas. Foi bom perceber que não importa o que aconteça, eu sempre terei um lar para voltar quando estiver todo coberto de sangue e de areia.

Subi para o meu quarto, me joguei na cama e encarei o teto por alguns minutos. Pela primeira vez em muito tempo, não pensei em nada. Talvez minha cabeça tenha se cansado de ficar pensando em um milhão de coisas ao mesmo tempo (como vinha pensando nesses últimos dias) e resolveu descansar um pouco. O olhar da minha mãe me acalmou.

"Quando eu me encontro em tempos difíceis

Mãe Maria vem pra mim

Falando palavras de sabedoria, deixa estar

E nas minhas horas de escuridão

Ela está em pé bem na minha frente.

Falando palavras de sabedoria, deixa estar."

(trecho traduzido da música Let it Be)

É incrível como essa música se entrelaça com a minha vida... É incrível.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Where stories live. Discover now