Capítulo Quarenta

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— Samaris! — Exclamei.

            — Então é você mesmo! — Abriu um sorriso e pareceu bem satisfeito em me encontrar.

            Jéssica rapidamente tirou a foto das minhas mãos, atiçada pela curiosidade de conhecer o rosto da Samaris:

            — Ela é linda. — Disse baixinho como quem falava consigo mesma.

             — Eu preciso conversar com você, Ick. — Ao dizer isso, percebi que ainda tem vestígios de sotaque japonês.

            — Então fale. — Respondi curioso.

            — Eu preciso conversar com você. A sós. — Acrescentou a última palavra com firmeza, lançando um olhar discreto em direção a Jéssica, que logo percebeu a mensagem.

            — Tudo bem, então. — Disse. — Eu te espero lá dentro, Ick.

            — Tudo bem. — Reparei o quão apreensiva ela pareceu enquanto se retirava e caminhava para dentro do salão de festas.

            — Podemos caminhar um pouco? — Disse em um tom elegante, apontando para a rua. A aquela altura, a curiosidade era tanta que se ele indicasse uma ponte eu certamente pularia para ouvir o que tem para me dizer.

            À medida que avançávamos a rua, ela ia ficando mais vazia e mais silenciosa. O senhor ao meu lado ainda não havia me dito o seu nome, mas era alguém que inspirava confiança a qualquer um que o olhava, pela sua aparência bondosa e os seus trajes finos.

            — Meu nome é Katsu. — Disse ele, que caminhava com as duas mãos para trás. — O seu nome é Ick mesmo ou trata-se de um apelido?

            — Meu nome é Ícaro.

            — Ícaro. – Repetiu lentamente. — Ícaro foi um jovem desobediente na mitologia grega. — Disse casualmente. — Desobedeceu as ordens do pai e voou perto demais do sol. Suas asas de cera derreteram em função disso, ele caiu e morreu.

            Por mais que Katsu estivesse apenas puxando assunto, aquilo me incomodou. Eu pensava em como poderia interrompê-lo para chegar logo ao ponto.

            — Me conte uma coisa, Ick. Como você conheceu Samaris?

            — A vi cantando uma vez, em um bar. Foi quando conversei com ela pela primeira vez. — E acrescentei. — Você é... Parente dela?

            — Digamos que sim. — Respondeu. — Na verdade, eu sou uma espécie de serviçal da família da Samaris. Convivo com ela desde o seu nascimento. Para mim, ela é mais do que uma filha. Ela esteve muito presente na minha vida e eu presente na dela, até o fatídico dia em que seus pais morreram. — Suspirou. — Que Deus os tenha. Eu fui o encarregado de passar essa notícia a Samaris. Nunca irei me esquecer de como ela olhou para mim quando perguntou se tudo não passava de uma mentira.

            — Desculpe perguntar, mas... Como você chegou até mim?

            — Esse é o ponto, Ick. Ela passou um ano muito difícil depois da morte dos seus pais. Entrou no que chamamos clinicamente de depressão. Passava dias tocando violão, sozinha. Perdeu contato com todos os seus amigos. — Katsu parou e reparou na rosa que se destacava de uma árvore. Se aproximou e admirou a flor enquanto continuava a falar. — Quando fez dezoito, passou toda a sua herança para uma conta bancária que não tínhamos conhecimento e fugiu. 

Ela me contou isso. Em partes...

            — Se ponha no meu lugar, Ick. Todos os tios dela e eu ficamos muito preocupados. Uma jovem solitária vagando por esse mundo perigoso! Nem consigo pensar no que poderia acontecer. Passamos a procurá-la incansavelmente com a ajuda da polícia e de detetives particulares que contratamos, com o intuito de convencê-la a voltar para casa. Infelizmente, nenhum deles teve sucesso. Até que um dia tivemos uma feliz notícia: Samaris aparecera num programa de televisão regional, nessa cidade.

            "É claro!", pensei, "o show de talentos que a fiz participar".

 Isso explica por que ela não queria participar do show de talentos e nem de nenhum show grande. Ela só fizera essa pontinha depois de muita insistência minha. Provavelmente, achou que uma única música na televisão regional não faria diferença. Eu ajudei a família de Samaris a encontrá-la!

            — Vocês a encontraram? — Perguntei.

            — Não. Quando chegamos aqui ela já tinha ido embora. Chegamos tarde, infelizmente.

            Lembro-me com clareza que ela foi embora exatamente um dia depois do show.

            — Mas, de qualquer forma, essa aparição foi muito importante. — Conforme falava, extraiu a flor da árvore. — Esse evento deu um rumo importante às nossas procuras. Um rumo que não tínhamos antes. Recentemente a encontramos.

            — Sério? E ela está bem? Ela simplesmente aceitou voltar para casa?

            — Infelizmente, Ick. Ela não teve opção. Fora encontrada em um hospital.

            — Hospital? O que ela tem?

            — Sim, hospital. Aparentemente um carro a pegou enquanto atravessava a rua. Felizmente não foi nada grave, ela quebrou um braço e bateu a cabeça de forma que desmaiasse. Foi levada ao hospital, mas quando acordou já estava em casa. Isso me leva até você, Ick.

            — Não entendo...

            — Desde que voltou para casa, não saiu da cama. Anda triste e abatida, sabemos que ela só está esperando melhorar para poder fugir para a estrada novamente. Estamos preocupados. — Ainda não conseguia entender por que ele viera me procurar. — Um dia qualquer, encontrei seu diário guardado na bolsa. A curiosidade me venceu e folheei algumas páginas, procurando por indícios do que ela tinha feito nesse período ausente. — Ele me observa atentamente por um segundo. — Quase todas as páginas falavam de você, Ick.

            Sinto minha garganta secar.

— Com base no que ela escreveu pude te encontrar aqui. Para te pedir um favor, meu bom rapaz.

            — Que tipo de favor o senhor veio me pedir?

            — Ao que me parece, ela te ama muito, o que é estranho, porque eu acompanhei sua adolescência de perto e ela nunca foi de se apegar desse jeito a rapazes. Por algum motivo, viu algo de muito especial em você. Quero que venha comigo o quanto antes para conversar com Samaris.

            — Conversar?

            — Na verdade, quero que a convença a ficar. Convença de que é perigoso continuar vivendo assim. Acho que você é a única pessoa no mundo que ainda tem um poder de persuasão sobre ela depois que seus pais se foram.

            — Desculpa, Katsu... Mas não sei se devo ir. Além do mais, não tenho certeza de que ainda tenho algum poder de persuasão sobre ela.

            — Ick. Pense em como isso pode ser bom. — Ele sorriu. — Vocês se reencontrando... E se ela tiver uma casa, você sempre saberá onde procurá-la quando sentir saudades.

            Ele tocou no melhor ponto em que podia tocar. A possibilidade de reencontrar Samaris tomou posse do meu corpo. Senti um calafrio subindo a minha espinha.

            — Onde ela está agora?

            — Não muito longe. Em Rio Grande do Sul, para ser mais preciso.

            Depois de refletir por um segundo, perguntei:

            — Se eu aceitar, quando partimos?

            — Quanto mais rápido, melhor. Na verdade, eu tenho afazeres por lá, estava pensando em partir hoje.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Where stories live. Discover now