Capítulo Vinte e Nove

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Eu e Jéssica não costumávamos nos falar na escola, os outros estudantes não sabiam de nada que havia acontecido nesses últimos dias e para eles a loira ainda me odiava.

Nesse mesmo dia o protocolo fora quebrado quando a encontrei sentada, sozinha, no pátio durante o intervalo. Cabisbaixa e com aparência triste:

—Tudo bem, Jéssica?

— Tudo... — Ela tentava secar as lágrimas antes que elas pudessem sair dos olhos deixando o choro aparente.

— Vai conversar um pouco com os seus amigos. — Me senti muito tolo com essa tentativa de conselho pífia. — Procura se distrair um pouco...

— Sabe, Ick... — Ela começou a falar. — Quando eu era pequena, uns oito anos de idade, ou menos, não lembro ao certo... Eu costumava passear com a Rose e o meu cachorrinho pelo parque da cidade.

— Quem é Rose?

— Rose era a minha babá. Ela passeava comigo quase todas as tardes no parque, um dia ela se descuidou por uns minutos, então o cachorrinho escapou das mãos dela e correu rua abaixo, instintivamente me soltei e corri atrás do cachorro. Estava com medo dele se machucar. Ouvia a Rose gritar por mim, mas não dei atenção, mantive o foco no cachorrinho, corri e corri e quando finalmente olhei para trás: não conseguia mais ver nem o parque, nem a Rose. Não sabia direito onde estava.

— Então você se perdeu, foi? — Eu ri. — Crianças costumam fazer isso às vezes.

— É, eu sei. — Ela também sorri. — A coisa que eu mais me recordo, foi que só fiquei uma hora e poucos minutos perdida, quando finalmente me encontraram descobri que meus pais já haviam chamado a polícia, avisado para quase todas as pessoas do meu bairro e reunido a família para me procurar...

Ela dá uma risadinha incrédula, parecia estar se divertindo com a lembrança.

— Até já estavam imprimindo cartazes com a minha foto! — Nós dois rimos. Isso não explicava por que ela estava chorando, mas achei melhor não perguntar.

— Eles sempre foram superprotetores. Eu era uma espécie de boneca que nunca deveria ser tirada de dentro da caixa, aos olhos deles. — Então o sorriso saiu do seu rosto. — Hoje eu estava conversando com os meus amigos... E achei que eles iriam... Sei lá! Me falar que receberam ligações preocupadas dos meus pais perguntando por mim. Mas nada. Meus amigos nem ao menos souberam que eu saí de casa e os meus pais não se preocuparam em saber onde passei a noite. — Ela olhou para mim novamente com os olhos marejados. — Eles não me procuram mais, Ick.

Eu não sabia o que dizer para acalmá-la. Nunca sei.

Os alunos passavam e apontavam quando viam a cena que se desenrolava, porém nenhum dos amigos se aproximou para perguntar por que Jéssica chorava.

— Pai?

Entrei lentamente na pequena sala de trabalho do meu pai.

— Ick! — Exclamou. — Você está atrasado quase vinte minutos!

Andei pensando muito nesses últimos dias. É incrível que mesmo com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo eu ainda tenha tempo para pensar. Acabei refletindo sobre algumas coisas, e tomando decisões:

— Eu não quero mais trabalhar aqui. — Falei com firmeza.

Ele parecia atônito:

— Como assim?

— Não quero mais. Demito-me. Irei procurar emprego em outro lugar.

— Por que diabos você não quer trabalhar aqui? Onde mais você acha que vai encontrar outra moleza como a que tem nessa empresa?

— Eu não preciso de moleza!  Eu só quero trabalhar num lugar em que me sinta bem! Eu não gosto daqui, não gosto do som das máquinas, não gosto do cheiro...

— Eu sei o que você quer! O que você quer é arrumar um emprego que lhe dê tempo de escrever as suas poesias!

Ele nunca havia falado tão abertamente sobre isso, a pior parte fora o tom de voz que ele usou: O tom de desaprovação.

Sento-me defronte para ele e pergunto em tom de desafio:

— Algum problema com as poesias? — Ele parece um tanto desconcertado e volta a mexer nos papéis.

— Problema nenhum, pelo contrário. Acontece que você tem que priorizar outras coisas na sua vida. Poesia não enche a barriga de ninguém.

— É para isso que serve a comida.

— E como você pretende comprá-la, Ick? Tem que trabalhar para isso.

— Tenho sim, por isso estou indo procurar um emprego agora. — E me levanto fazendo menção de sair.

— Tudo bem, filho. — Ele ergue a mão num sinal me pedindo para ficar mais um pouco, esfrega a testa e suspira ruidosamente. — Se você quer sair eu não tenho como te impedir. Vamos combinar assim: se você não conseguir outro emprego num período de três semanas você volta, ok?

— Parece razoável, pai.

Ele olha para mim com aqueles olhos cansados. Esfrega o rosto vagarosamente:

— Sabe, Ick. — Ele disse. — Eu só queria poder te entender.

— Como assim?

— Te entender, Ick. Fiquei sabendo que você também deixou o futebol. É verdade?

Não havia sido uma escolha consciente, eu simplesmente fui faltando treino após treino até ficar claro que não estava mais no time.

— É verdade, pai. — Quando converso com ele, por algum motivo, sempre acabo optando por usar frases curtas. 

— Por quê? Eu achava que você gostava de futebol!

— Talvez sejam pelos mesmos motivos que estou saindo daqui. — Respondi. — Eu gosto, mas... Não era para eu estar aqui agora. Entende?

— Não. — E em seguida acrescenta. — Eu só queria poder te entender.

Segundos de silêncio desconcertantes se seguiram. Eu estava na frente do meu próprio pai e ao mesmo tempo de um estranho.

— To indo nessa. Até mais, pai.

Me levanto e vou até a porta. Quando estou com a mão na maçaneta ele pergunta:

— E quanto... Aquela garota que dormiu em casa ontem? Ela tá bem?

— Sim...

— Qual é o nome dela mesmo?

— Jéssica.

— Ela é bem bonita, não é mesmo? — Eu já sabia onde ele queria chegar.

— Eu não tenho nada com ela, pai.

Ele solta uma risadinha sarcástica.

— Foi o que eu pensei...

Eu bato a porta com força quando eu saio.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Where stories live. Discover now