Capítulo trinta

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Estava caminhando a esmo na rua quando parei em frente a uma barraca de lanches, não por causa dos lanches, mas sim pelo pequeno rádio de pilha pendurado por uma alça na maçaneta do carrinho de cachorro quente. Entre os chiados ouvia-se a animada voz do locutor que anunciava:

— Agora meus amigos bzzzzz para relem... bzzzz os velhos tempos bzzzz iremos ouv... bzzzz uma música da época de ouro bzzzzz dos nossos eternos reis bzzzzzzzzzz Let it be!

O piano indicou o início da música. Let it be aciona aquele gatilho da memória de um jeito que só a música é capaz de fazer e me lembra de coisas que eu não tenho certeza se quero lembrar.

Sento-me no banco da praça e me perco na música.

— Posso me sentar aqui?

Ergo os olhos e enxergo uma senhora de idade, uma cigana na verdade, usando roupas típicas, cores vermelhas e douradas, correntes de ouro.

— Sim, claro.

Ela parece feliz consigo mesma e ao sentar-se ao meu lado e pegar uma pequena caixa colorida:

— Tá vendo essa caixa? — Ela pergunta olhando para mim, percebo que vários dos seus dentes são de ouro. — Por uma moeda eu tiro a sua sorte de dentro dela.

— Hum. — Não consigo imaginar nenhuma maneira de dispensá-la educadamente.

— Você não acredita nisso? — Ela pergunta.

— Você acredita? — Retruquei esperando a clássica resposta mais óbvia. Mas ela não responde. Abre um largo sorriso, puxa um cigarro e acende calmamente:

— Menino ingênuo. Numa época dessas pouco importa se eu acredito nisso ou não. O que eu vendo são sonhos. Esses sim são importantes. - De uma hora para outra senti-me tentado a comprar um sonho.

— Então tire a minha sorte.

— Sim, claro. Por uma moeda.

Reviro o meu bolso e encontro uma cédula de cinco reais.

— Tome.

Ela recusa a nota.

— Só aceito moedas. 

Sem entender direito, mergulho novamente minha mão no bolso e encontro uma moeda.

— Mas essa é uma moeda de um real. Serve?

— Sim, essa serve. — A cigana pega a moeda de valor inferior à da cédula recusada e tira de dentro da caixa um cartão plastificado com uma frase escrita. — Aqui está a sua sorte.

— Obrigado. — Respondi, guardando o cartão dentro do bolso sem ler a frase nele escrita, porque naquele momento, outra dúvida passava por minha cabeça.

— Posso te perguntar uma coisa?

— Sim, meu querido. É claro que pode.

— Você é nômade, né?

— Se você está tentando dizer que eu sou uma pessoa que mora em vários lugares e mora em lugar nenhum: eu sou sim.

— Por quê?

— Por que o que, meu querido?

— Por que você escolheu viver assim? Por que não construiu uma casa como todo mundo, para viver sempre no mesmo lugar.

Eu sei que estou sendo indelicado, mas sinto que se não tentar entender isso, posso explodir. Eu espero uma resposta, uma resposta para tudo, uma pista, algo que me faça entender.

Ela sorri:

— Todas as pessoas têm motivos diferentes para optar por esse estilo de vida, meu querido. — Respondeu. — Não creio que se eu explicar os meus motivos, possa esclarecer quaisquer duvidas que você tenha sobre si mesmo.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Where stories live. Discover now