Capítulo Vinte e Um

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Analisando a situação: estou na casa de uma garota que me odeia. Após me chamar de estranho e sorrir para mim, a loira partiu desesperadamente para o banheiro.

Por que nada na minha vida pode ser normal?

Confesso que fiquei assustado. Levantei devagar e fui até a porta do banheiro com cautela. Ouço um barulho que não consigo identificar:

— Jéssica! — bati na porta devagarzinho com o nó dos dedos — Você está bem?

— Estou sim. — ela respondeu com a voz embolada. — Pode ir fazendo o trabalho... Eu já to ind...

Mais barulho. Estava vomitando

— Quer que eu chame um médico?

— Não! Não precisa! Sério!

Ouço o ligar da torneira, provavelmente lavava a boca. O barulho se prolongou por mais tempo do que deveria. Silêncio longo, apenas o som da água escorrendo e batendo na pia. Ouvi um choro.

— Jéssica! — chamei novamente — Abre essa porta, vamos conversar.

— Não! — agora ela definitivamente nem fez força para tentar esconder o choro. Mesmo se fizesse, não teria sucesso. — Sai daqui. Eu quero ficar sozinha!

Por que as pessoas pedem por solidão quando mais precisam de alguém do lado?

— Eu não vou para lugar nenhum. — ao dizer isso, me sentei no chão com as costas apoiadas na porta.

— Olha, Ick... — ela respondeu. — Eu sei que você não gosta de mim e...

— Não gosto de você? — interrompi. — Eu nunca disse isso.

Silêncio, ouvi o som dela se sentando também, estávamos encostados na porta de madeira, a única coisa que nos separava, respondendo a voz que vinha do outro lado.

— Você não me odeia? — perguntou a voz da Jéssica.

— Não. — respondi sinceramente.  — Não tenho motivos para isso.

— Aquilo que você fez na festa...

— Foi por outros motivos. Você sabe disso.

— Entendo — respondeu com a voz fraquinha. — Nunca imaginei que alguém faria aquilo.

— É como você disse: eu sou um garoto estranho. — risos.

— Você não é estranho. É só diferente. No fundo, estou começando a pensar que todos deveriam ser como você.

— As suas festas sairiam muito caras se todos fossem como eu.

Mais risos. Senti que finalmente estava a animando, o momento ideal para voltar ao assunto:

— E então, Jéssica... Posso entrar?

— Ick. Eu posso confiar em você?

— Claro que pode.

 Ouvi o trinco da chave, a maçaneta girou e a porta se abriu revelando uma Jéssica diferente. Nem de longe parecia aquela garota perigosa, decidida e segura de si. Na verdade, parecia uma criança assustada. Seu rosto estava manchado pelas lágrimas, seus ombros estavam baixos e recolhidos, ela segurava o choro enquanto falava:

— Ick... Eu... Eu estou grávida.

Jogou-se nos meus braços e desatou a chorar. Fiquei sem reação.

Levou alguns minutos para Jéssica se acalmar um pouco. A guiei até seu espaçoso sofá, nos sentamos frente a frente.

Não sabia como lidar com a situação, mas queria ajudar. Decidi que seria melhor tratar cada tópico do problema separadamente, começando pelo mais importante.

— Seus pais. – falei.

— O que têm eles?

— Eles já sabem? Do bebê que está vindo?

— Não e nem vão saber.

— Você não pode esconder um bebê por muito tempo.

— Eu não quero ter esse bebê.

— Saiba que é uma decisão muito séria. No Brasil aborto é crime, existem clínicas clandestinas que fazem esse serviço, mas é muito arriscado...

— Eu não sei, eu não sei, Ick... —Jéssica falou com a voz fraca e voltou a chorar.

Intimamente me crucifiquei por ter tocado no assunto tão cedo e a feito chorar novamente. Esperei alguns minutos. Começou a passar um desenho animado divertido na televisão, Jéssica olhou vagamente para a TV e pareceu se distrair levemente.

— E... Quem é o pai?

— Não quero falar sobre isso...

— Jéssica. Você tem que resolver isso o quanto antes. Você sabe disso...

— O pai é um idiota!

— Você tem que contar para os seus pais o que está acontecendo. Isso não é algo que possa ser escondido!

Ela abraçou o meu braço, ainda com a cabeça encostada em meu ombro, tremeu levemente:

— Eu não consigo contar, Ick... Pelo menos, não sozinha.

Aqueles foram os dois segundos mais loucos da minha vida. Eu não precisava fazer isso, eu não queria fazer isso, eu não podia fazer isso, mas eu IRIA fazer isso:

— Jéssica. — falei. — Eu posso ir com você. Quer dizer... Claro que eu não vou poder falar muita coisa... Mas, estar ao seu lado... Acho que pode ajudar um pouco que seja.

Lá estava ela, um ser humano que apesar de todos os desprazeres comigo precisava de ajuda. E aqui estou eu, alguém que pode ajudar. Nada mais natural.

— É sério?

Ela ergueu a cabeça para poder olhar no meu rosto novamente, com os olhos e nariz vermelhos, mantendo uma beleza característica, mesmo nessa situação:

— Você iria comigo falar com os meus pais sobre isso?

— Aham. — Respondo — Mas com a condição de que eu não direi nada. Só estarei presente para lhe dar força e te apoiar.

Nunca fui abraçado tão forte na minha vida:

— Me desculpa, Ick.

— Desculpa pelo quê?

— Por ter te achado um babaca.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Where stories live. Discover now