Capítulo Onze

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  • Dedicated to Juliana Daglio
                                    

Um lembrete sobre os nossos pais: eles são humanos.

Isso pode parecer óbvio, mas nos esquecemos desse detalhe constantemente. Passamos tanto tempo de nossas infâncias nos protegendo atrás deles e nos inspirando neles que esquecemos que são como qualquer outra pessoa, sujeitos a erros e equívocos. O importante é que eles (em sua maior parte, pelo menos) sempre desejam o melhor para as suas crias. Mas pecam, é claro.

Entrei no meu quarto e encontrei meu pai sentado na cama com a sua camisa social branca de sempre, desabotoada até certo ponto, sua calça social preta, sua gravata jogada ao lado e, em suas mãos, o meu caderno. Meu pai encontrou o meu caderno de poesias, aquele mesmo que eu mantinha escondido debaixo da cama dentro de uma caixa velha de videogame. Ele folheava lentamente com uma expressão séria no rosto. Na verdade, não se podia tirar nada daquela expressão seriamente neutra. Era impossível imaginar o que se passava em sua mente naquele momento.

Entrei vagarosamente no quarto, fechando a porta sem fazer barulho. O "clique" que a porta faz quando é fechada o despertou para a minha presença. Ele ergueu a cabeça, não falamos nada. Sentei ao seu lado. É incrível como ele parece uma vertente de mim mais velha, maior e mais forte. Minha mãe está certa, nós nos parecemos muito: "Seriam clones perfeitos", disse ela uma vez, "mas como sempre estão andando de formas diferentes, falando de jeitos diferentes e com uma expressão de rosto diferente um do outro, as pessoas quase não conseguem enxergar isso".

Verdade, quando estamos parados e sem expressão, eu e o meu pai somos exatamente iguais. Como demorei tanto tempo para perceber isso?

Eu e ele nunca nos falamos muito, meu pai não é do tipo falador e eu por minha vez sempre me senti meio distante dele. Esse vácuo aumentou na medida em que eu crescia e ele ascendia profissionalmente, ficando cada vez menos tempo em casa.

Ele está com o meu caderno de poesias na mão.

 Folheia mais uma vez, o caderno já está frágil e tenho medo que rasgue alguma página pelo modo bruto como o manuseia.

— O que é isso? — perguntou.

— É o meu caderno, oras.

— E isso que está escrito aqui? — o modo como ele perguntou me pareceu estar oferecendo uma chance inútil de tentar mentir. Eu não fiz nada de errado, não me importo com o que ele vai pensar.

— Poesias, pai.

— De quem? — ele já sabia que eram minhas, mas queria que eu mentisse.

Minhas poesias, pai. — respondi com firmeza.

Ele não disse nada por um tempo, voltou a folhear o caderno. Permaneci em silêncio.

— A maioria dos garotos tem uma Playboy escondida, sabia?

— Eu tenho internet, pai. — a minha tentativa de fazer uma piada foi totalmente fracassada.

— Onde você arranja tempo para escrever isso? — por algum motivo, essa pergunta me ofendeu.

— Se fosse outra coisa, você perguntaria isso? — ele não me respondeu.

— Semana que vem você vai começar a trabalhar comigo lá na firma, ok? Vamos ocupar essa sua mente com coisas úteis.

— Tudo bem, pai. Ainda vou arrumar tempo para as poesias.

— Outra coisa. — ele suspirou, parecia exausto. — Eu vou levar esse caderno comigo esses dias, vou ficar com ele por algum tempo só...

— Pai. — o interrompi.

— O que foi?

— Você pode me impedir de escrever poesias. Mas não pode me mudar.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Where stories live. Discover now