Capítulo 2

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     Acordo com gosto de sal nos lábios e o rosto marcado com rastros de lágrimas. Lana não está em canto algum do quarto e a porta está entreaberta. Saio de debaixo das cobertas e esfrego os olhos. Permaneço encarando a porta, à espera de meu pai, que a qualquer momento vai entrar e me dar a notícia de que quer me casar com um completo estranho. Só de pensar nessa ideia, meus olhos ardem – mas as lágrimas parecem ter acabado.

     Ele não demora muito. Ouço três batidas na porta de madeira branca e papai entra, sorridente. Fito e janela, a neve que continua a cair, e desejo ser um floco de neve agora e ir para longe daqui.

     – Bom dia, princesa adormecida – papai ri. – Dormiu bem?

     – Não – respondo categoricamente -, a nevasca estava forte demais. Acho que vou ficar na cama até mais tarde.

     – Nada disso – madame Daisy chega ao quarto com um embrulho de papel de seda nos braços. – Hoje a senhorita tem muito que comemorar.

     Olho para os dois, crispando os olhos.

     – Por acaso dormi por um ano e já é meu aniversário outra vez?

     Madame Daisy sacode a cabeça enquanto deposita o embrulho sobre minha poltrona de leitura. Ela para e olha para mim, cordialmente.

     – Você e seu pai têm muito o que conversar. Vou deixá-los à vontade.

     E ela nos deixa.

     Papai puxa o banquinho da minha penteadeira e senta-se perto da cama, onde ainda estou, abraçada a um travesseiro. Não quero encarar meu pai. Ele parece tão feliz, tão cheio de expectativas... não quero decepcioná-lo.

     Tampouco quero me casar com quem ele quer que eu case.

     – Anna, querida – ele começa a falar, meio nervoso. Seus cabelos grisalhos quase cintilam à luz precária do sol que entra pela janela fechada. – Hoje receberemos a família Bjorgman para um jantar muito especial em nossa casa. Um jantar importante principalmente para você.

     Esforço-me para me fingir de desentendida.

     – Para mim? Por quê?

     Papai fica sem jeito, corado.

     – Você já atingiu a maioridade, querida, e precisa de um marido. O filho mais velho do casal Bjorgman é um pretendente mais que adequado para você.

     Agora me permito desabar.

     – Como... como pode me dizer algo assim, papai? – minha voz sai entrecortada, chorosa. – Um casamento arranjado? Como o seu e o da mamãe? Achei que não quisesse isso para mim! E eu... eu nem conheço esse pretendente. Como quer que me case com ele? Eu não quero!

     – Ouça, minha filha... Eu esperava que reagisse desse modo, mas...

     Num salto, levanto-me da cama.

     – Não vou me casar. Não importa o que diga.

     – Anna, escute...

     – Achei que quisesse que eu fosse feliz!

     – E eu quero! – ele também se levanta. – É exatamente por isso que escolhi esse rapaz para ser seu marido. Confie em mim, minha filha, você precisa confiar em seu pai.

     – Não!

     Um olhar sombrio cruza o semblante dele e papai me puxa pelo braço antes que eu saia do quarto.

     – Escute-me, Anna – ele diz, com firmeza. - Escute com atenção. Você se casará com o rapaz Bjorgman querendo ou não porque é para o bem de toda Liriel. Você é minha filha e essa cidade é sua responsabilidade também. Precisamos cuidar do povo e o povo precisa que você se case.

     – Por quê? – a pergunta sai engasgada.

     Papai me solta. Baixa os olhos e volta a se sentar no banquinho.

     – Tive uma reunião com os banqueiros e o tesoureiro da cidade há uns três meses, querida. Os cofres da cidade não darão conta de sustentar a todos. A economia por aqui está em crise, as pessoas estão fazendo negócios com o pessoal da metrópole ao invés de comprar de seus próprios vizinhos e amigos de bairro. Se as coisas continuarem desse jeito, a cidade entrará em completa miséria.

     Cubro os lábios com os dedos. As famílias de Liriel são tão trabalhadoras e honestas, as pessoas são tão gentis e prestativas! Ninguém aqui merece viver na pobreza. Mas para que isso não aconteça eu tenho que me casar?

     – Por... por que você acha que meu casamento resolveria isso tudo? – pergunto, hesitante.

     Meu pai suspira e esfrega os olhos, parecendo cansado.

     – Os Bjorgman são riquíssimos. Concordaram em construir um ponto comercial para atrair cidadãos da metrópole a investir dinheiro em Liriel, se seu filho encontrar uma razão forte o suficiente para se estabelecer aqui.

     Mordi o lábio.

     – E não há outra maneira?

     Papai nega.

     – Eles querem casar o filho com uma moça de boa família. Querem herdeiros para ficar com suas terras. Essa é a condição imposta.

     Sinto meu rosto arder quando papai diz aquilo. 

    Herdeiros?

     Pela primeira vez na vida, não sei o que dizer. Abro a boca, mas as palavras não saem.

     Meu pai governa Liriel com bons princípios, com bondade e colocando as necessidades da população antes das suas. Um bom governante deve colocar seu povo antes de qualquer coisa. Eles dependem dele, papai sempre diz. E eu o acho bom e nobre exatamente por causa desses princípios. Quero ser como ele, quero que as pessoas confiem em mim. Mas terei que sacrificar minha liberdade por isso?

     – Pai... – suspiro. – Posso pensar um pouco sobre isso?

     Ele me olha com tristeza e por um minuto acho que ele vai chorar.

     – Não, Anna. A data do casamento já está marcada – ele engole em seco e funga. – Eu me odeio por forçá-la a isso. Sinto como se estivesse vendendo-a a esses... esses... ricos.

     Não consigo ficar zangada com ele. Não mesmo. Sinto-me uma garotinha mimada por fazer um escândalo desses enquanto meu pai, que cuidou de mim sozinho e sacrificou tanto por mim, está em conflito com o amor e o dever. Sinto meu coração doer, mas tomo finalmente minha decisão.

     – Certo, pai – apoio as mãos em seus ombros e ele olha para mim. Não consigo sorrir. – Eu entendo o motivo de tudo isso. Entendo de verdade. E se preciso me casar com o filho dos Bjorgman para salvar Liriel, que assim seja. Tudo pelo bem do povo, não é? É um sacrifício que estou disposta a fazer.

     O rosto dele se ilumina e ele se levanta e me abraça apertado.

     – Querida, querida, querida... Obrigado – ele segura meu rosto em suas mão e beija minha testa. - Você não faz ideia de como estou feliz em ouvir isso. Obrigado, meu anjo.

     Ao menos um de nós dois está contente.





Amor e Liberdade #1Where stories live. Discover now