1 - Os óculos, o veterano e a garota

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Para muitos era um dia de festejos, satisfação e regozijo. Afinal, era a comemoração de cinquenta anos da revolução gloriosa. Em todo estado de Durkheim, fosse em grandes cidades, pequenas vilas ou mesmo no campo, um dia de comemorações.

As ruas da capital, Voln, estavam repletas de gente que aguardava a grande parada. No dia anterior, a cidade foi coberta pela neve de uma tempestade extemporânea que sugeria a chegada de um inverno rigoroso. Devido a isto, logo cedo, centenas de civis foram convocados pelo estado para prestar serviço público. Estes foram equipados com pás, vassouras e carrinhos para limpar as ruas e avenidas, nas quais a parada iria passar. Com efeito, o excesso de neve foi removido, possibilitando a passagem dos carros e organizações em marcha. Havia muita gente uniformizada e diversas bandas marciais. Policiais, militares, escolares e universitários compunham o desfile que homenageava os mortos no conflito que libertou o povo do domínio e opressão exercidos pelo regime monárquico.

O jovem Ilya Gregorvich observava a parada e fazia cálculos matriciais para aliviar a tensão. Contava linhas e colunas de pessoas no desfile, calculava o número de pessoas por agrupamento, velocidade média da marcha, número total de pessoas por organização e definia, com sua mente, bastante singular, relações estatísticas e probabilísticas. Com isso, foi capaz de predizer qual seria o atraso na programação da parada, que acertou, salvo uma pequena margem de erro quase desprezível. Após tantos cálculos durante os quais seus olhos azuis escuros varriam todo o cenário, sua mente chegou a uma pausa relaxada. Porém, a tensão retornou e, para aliviá-la, um novo conjunto de cálculos teve início.

O objeto, recém adquirido, esquentava em suas mãos. Curioso quanto a seu propósito, Ilya colocou mais uma vez os óculos experimentando-os por alguns instantes, porém não notava diferença alguma. Pensava intrigado "Por que alguém faria óculos sem correção?". Em meio a tais pensamentos, o rapaz fixou o olhar sob uma colegial de uniforme azul e branco que desfilava logo adiante. "Marya", pensou. Em seguida, baixou ligeiramente a armação com os olhos fixos na moça para a incômoda conclusão: "Não há diferença alguma!".

Em instantes, perdeu Marya de vista. Talvez, se no passado tivesse ocultado seu talento para matemática, estivesse lá, junto aos antigos colegas do Duque de Dusseloris, participando do desfile. No entanto, há três anos, interrompera seus estudos no colegial para saltar direto para o curso de matemática na Universidade de Voln.

"Marya fez-se mulher...", refletiu o rapaz admirado. Aquela constatação, refletida nele mesmo, mexeu com suas emoções e foi invadido por uma forte melancolia que chegava a doer. "Sou quase homem, mas quase morto...". Embalado por seus pensamentos, Ilya recordou-se das imagens fortes que havia presenciado bem cedo, naquela manhã, antes da parada. Junto com as imagens, recordava-se das vozes e diálogos com perfeição. Sua mente, além de cunhada para a matemática, também gozava de memória excepcional.

– Ele está morto! – recordou-se do desespero da senhora desconhecida que gritou horrorizada.

– Pobre homem. – comentou seu colega de quarto, Halle Bremmen.

– Socorro! Acudam! – outra pessoa gritava, ao mesmo tempo, atrás de Ilya.

– Talvez ainda possa ser ressuscitado. – um velho arriscou.

Ilya escutava as vozes ressoando, mas as imagens fortes do ataque não saiam de sua mente. Tudo estava bastante calmo, todos trabalhando na limpeza das ruas, exceto aquele homem. O homem que estava prestes a sofrer o ataque. Ele era magro, narigudo e, de alguma forma, Ilya pensava que aqueles óculos eram pesados demais para sua face. Os aros da armação eram grossos e escuros, as lentes desproporcionais naquele rosto fino e magro. Ele parecia catatônico, com o olhar vidrado, mas não como se olhasse para o infinito, parecia, na verdade, observar algo ali por perto. Ilya procurou algo na direção, mas não havia nada, exceto uma parede e alguns latões. Em seguida, o magrelo franziu o cenho e disse algo para si mesmo. Ilya não chegou a captar o sentido das palavras, pois estava distraído calculando razões de proporção entre o rosto e os óculos. O coeficiente encontrado era curioso. A próxima coisa que percebeu foi que o homem fez uma careta de dor intensa e sua queda, como se tomasse um escorregão no gelo. Ele estrebuchou, o rosto ficou primeiro vermelho e depois azulado, a saliva espumando abundante a partir de sua boca. Uma contorção final e pronto: estava inerte. Pouco depois, o desconhecido foi levado numa maca improvisada.

Os Óculos Indesejados de Ilya GregorvichWhere stories live. Discover now