24 - Kólia Semiónytch

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Ilya tinha um mau pressentimento quanto àquela linha de ação. Estavam ambos próximos à entrada principal da universidade de Voln. Era um grande portal, com esculturas de Elkins, rodeados por dragonetes e de alguns famosos acadêmicos, como Rupert Aren. O local estava movimentado, cheio de estudantes chegando para as aulas. Ilya estava bem agasalhado, pois ainda tinha algumas roupas em seu quarto, no apartamento do tio. Fora do período de aulas, costumava passar alguns dias por lá.

– Halle, espera! – Ilya puxou o amigo pela manga do casacão.

– O que foi?

– Tem uma coisa que queria te perguntar, mas não achei oportunidade.

– O quê é?

– Achei um fundo falso, ao lado de sua cama. Nela, uma caderneta com anotações estranhas...

Halle engasgou e ficou em silêncio por uns instantes.

– O que são aquelas anotações? Como você consegue supersoro?

– Duas perguntas aí... Mas tudo bem, não temos tempo a perder. Tenho muitos contatos e lido com coisas perigosas. Há vários grupos organizados, fora do governo, em nosso país. Eu faço parte de um deles. Nada tão ruim quanto o Bahamute, não se preocupe, certo? – Halle foi direto. Ilya era alienado, mas já lera notícias a respeito do Bahamute, uma organização criminosa que operava na região de Kassev.

– Depois você pode me contar mais sobre isso?

– Talvez, depende.

– De quê?

– Depende de obtermos sucesso no que estamos para fazer. Venha, precisamos aproveitar o horário de maior movimentação para nos misturarmos à multidão.


***

Pouco depois, entravam no prédio onde funcionavam os cursos de cinema, artes e literatura. Uma espécie de central de confusões no campus universitário. Devido ao forte poder do estado e do controle dos meios de comunicação, havia uma secretaria especial que trabalhava junto aos docentes daqueles cursos. Um corpo de censores do Ministério das Comunicações e Cultura, o MCC. O objetivo destes era garantir que os níveis de subversão, em especial destes cursos, ficassem sob controle. Entraram no prédio que continha, em seu interior, uma área de convivência e um bonito jardim de inverno com plantas exóticas de folhas azuladas e púrpuras.

A loção de Xir era realmente muito boa. Os disfarces eram impecáveis. Halle barrigudo e com um narigão de falcão. O jovem matemático, por sua vez, estava diferente, com o rosto bem quadrado, sobrancelhas grossas e lábios grandes.

Subiram um lance de escadas junto com dezenas de outros estudantes que carregavam grandes pastas, telas e rolos de papel. Havia um portão de madeira, pintado de azul escuro, identificando a entrada do Departamento de Ótica.

O par entrou neste corredor, pouco movimentado, seguindo até os fundos onde havia uma oficina.

– Kólia Semiónytch. – chamou Halle colocando sua cabeça para dentro da sala.

– Sim? Quem me chama? – respondeu um homenzinho peludo, de troncos largos, barba escovada e óculos de aro grosso, semelhantes ao SOGEP de Ilya.

Entraram na oficina. Era um local apertado com uma bancada repleta de peças, lentes, fios e ferramentas. Havia um capacitor taumatônico sobre a mesa pulsando. Emitia uma fraca luz azulada e um zumbido característico "Nhum-Nhum-Nhum".

– Está só?

– Sim, o que querem?

– Escute, Kólia Semiónytch, está lembrado da encrenca que sua filha arrumou com o MCC há dois anos?

– Oh, não, não, não! – desesperou-se o baixinho puxando os cabelos grisalhos – O que ela fez desta vez?

– Nada. Eu vim para falar sobre o que nós fizemos por você. Sobre como neutralizamos aquele incidente junto ao censor.

– Oh, sim, vocês são da... – os olhos arregalados pareciam maiores por trás das lentes grossas.

– Exato! E precisamos de um favor seu.

– Oh, sim! – o rosto de Kólia iluminou-se – Para vocês, qualquer coisa!

Halle estendeu a mão para Ilya e pediu – Cadê, moleque?

Ilya tirou o SOGEP do bolso e entregou-o. Halle prosseguiu – Veja, senhor Semiónytch.

– Sim? Qual o problema? Precisa de reparos?

– Não, hum... – Halle não sabia acionar os óculos. Ilya tomou-os de volta e afastou as hastes no ângulo correto e depois girou a haste direita. As imagens surgiram. O rapaz ofereceu os óculos – Veja.

Kólia observou estupefato – Oh, sim! Extraordinário!

Halle tomou os óculos do servidor técnico.

– Precisamos captar estas imagens em um filme. – Halle colocou-os abertos sobre a bancada. – Acha possível?

– Hum, sim, sim! Iluminando-os da forma correta... – já divagava.

– E, mais uma coisa, precisamos que nenhuma palavra sobre isto seja dita.

– Claro, por vocês, qualquer coisa! – ele bem que podia se por de joelhos a qualquer momento.

Kólia pegou um grande molho de chaves, envolveu os óculos numa flanela e tomou o caminho dizendo – Esperem aqui, senhores, volto logo.

Halle foi até a porta espiar aonde ele ia. Enquanto isso, Ilya examinava inúmeros objetos sobre a bancada. Parecia que o lixo de duas semanas fora reunido e despejado sobre a mesa. O zumbido do capacitor e sua pulsação atraiam Ilya, colocando-o num estado de concentração. O aparelho pulsava cento e oito mil vezes ao dia, calculou. Outros cálculos, como de costume, foram disparados, até que sentiu um arrepio na nuca e escutou um murmurejar "Mestre! Mestre! Nos salve! Estamos aqui!". Ilya sacudiu a cabeça, mas o lamento continuava "Mestre! Mestre! Nos salve! Mais perto!". Ilya aproximou-se de Halle e as vozes ficaram mais intensas.

– Halle, tem uma coisa na sua bolsa pedindo ajuda.

– Bebeu, frangote?

Ilya foi tomado por um forte impulso e abriu a sacola de Halle subtraindo desta a garrafa que Halle havia confiscado do agente Oleksei. Colocou-a junto do ouvido e sentiu-a vibrar na mesma frequência do capacitor.

– Aquele homem do bosque! – Ilya apertou a manga do casaco de Halle. – Ele está próximo! Está vindo para cá.

Halle achou estranho, mas não quis duvidar daquela percepção súbita. Talvez sua teoria de que Ilya pudesse ter sido afetado psiquicamente pelas drogas dadas por seu tio... Então, correu até o estúdio de gravação no qual Kólia havia entrado.

– Escute, Kólia Semiónytch, surgiu um problema e teremos que sair.

– Sim, volte amanhã. O filme estará pronto.

– Ótimo! Obrigado.

– Sou eu quem agradece por ser útil.

– Se não pudermos, virá uma companheira nossa buscar o material, combinado?

– Sim, claro!

Halle saiu para encontrar Ilya no corredor com a garrafinha colada ao ouvido.

Agarrou-o pela gola do sobretudo. – Vamos, frangote!

– E o SOGEP? – Ilya resistiu e fincou os pés no chão.

– Buscamos depois. – disse Halle arrastando o magricela.

Os Óculos Indesejados de Ilya GregorvichWhere stories live. Discover now