14 - O maltisseíta

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Ilya observava os navios no porto de Voln. Guindastes carregavam e descarregavam contêineres dos navios cargueiros. Distraía-se calculando volumes de carga e possíveis montantes das transações financeiras. Tentava evitar pensamentos que lhe traziam ansiedade, tais como "E se Halle fosse preso ou morto? O que faria?". Um pouco antes de distrair sua mente com cálculos, pensava sobre ingressar em um daqueles gigantes de metal de bandeira estrangeira como clandestino. O mundo era tão grande e ele conhecia tão pouco. Tinha tão pouco tempo para viver. Seis meses? Um ano? Fora advertido pelo doutor. E, agora, com toda a confusão presente, mesmo uns poucos meses podiam ser tomados. A ideia de passar o resto de seus dias numa cela de prisão oprimia o rapaz.

Ilya sentia-se mal e o porto evocava memórias ruins. Lembranças do naufrágio e da perda de sua família. Sentia-se idiota por ter se revelado tão facilmente a Hurtog na universidade. Em sua mente, ouvia a voz de Halle recriminando-o "Você é bom em matemática, mas um mané em todo resto!". Sentia-se culpado por nem saber ao certo o que era um Vorn-Nasca. E mais o quê de importante também não saberia?

O sol descia rápido, tingindo as águas da baía com luzes douradas. "Halle já devia ter chegado", pensava. Perdeu sua concentração nas contas que o distraíam. A ansiedade tomou conta. Estava exausto e ficar ali até após o crepúsculo não parecia uma boa idéia, afinal, a região portuária ficaria um pouco perigosa à noite.

Dirigiu-se à pensão barata, indicada por Halle, que hospedava marujos e estrangeiros. Preencheu o livro de hóspedes com um nome falso, pagou pela noite e recolheu-se ao quarto. Era um salão amplo e sujo. Tinha dez beliches e um armário de metal encardido e enferrujado. Uma porta estreita de armário para os pertences de cada hóspede. Teve um pouco de dificuldade para identificar sua cama e armário, pois os números pintados estavam apagados. Deitou-se, mas não conseguia dormir. Observava o movimento no quarto e chamou-lhe muito a atenção a entrada de estrangeiros não humanos. Um maltisseíta e dois areales. O primeiro tinha constituição física robusta, uma careca que brilhava refletindo a luz central e aquele estranho tom de pele azulado que deixava bem claro que não era humano. Os outros dois eram baixos, troncudos, com cascos cinzentos e olhos redondos e negros. Pareciam animais saídos de um zoológico, porém eram bípedes e possuíam inteligência razoável.

Ilya imaginou como seria o país dos elkins, onde vivem diversos povos não humanos. Como reagiriam por lá se soubessem que em Durkheim havia elkins cativos e que suas vidas eram sugadas para alimentar a rede energética do país. Aconteceria uma guerra, uma revolução, ou, mesmo, Durkheim entraria em colapso? Exausto e com a mente fervilhando com problemas o rapaz acabou adormecendo.

Gregorvich despertou com a movimentação intensa no quarto da pensão. Do lado de fora, apitos dos navios sinalizavam o reinício da jornada de trabalho. Ele estava faminto e desceu com os demais para o salão onde era servido o desjejum. Mal reparou que o estrangeiro maltisseíta sentou-se à sua frente e que o estudava com o olhar. Comia absorto em seus pensamentos conjecturando que o pior tivesse acontecido a Halle.

– Problemas? – veio a voz grave do maltisseíta.

– Falou comigo? – retrucou Ilya.

– Sim. Parece você ter muitos problemas. – disse o estrangeiro com um forte sotaque expressando-se mal no idioma Durk.

O rapaz examinou-o. Sua pele azul, suas feições inumanas, narinas enormes que causavam certa repulsa e desconforto. A boca era pequena e estreita e mexia pouco para falar, como se estivesse conversando com um ventríloquo, no entanto, a voz era grave e potente. No fim das contas, apesar do estranhamento, Ilya sentiu uma certa simpatia pelo estrangeiro.

– Você não acreditaria...

– Observei sono muito agitado. Agora, ainda muito agitado. Não mastiga, engole comida.

– Minha vida virou ao avesso! É uma loucura. – Ilya passou a mão pelos cabelos despenteados.

– Compreendo. Se tempos difíceis, procurar pelo Criador.

– Não acho que nenhum criador possa resolver meus problemas, amigo. – ele balançava a cabeça.

– Me chamo Catermei. Verdade, Criador não resolver problemas para ninguém.

– De fato! – demonstrou um pouco de impaciência.

– Se mente inquieta, oração de conversar com Criador, caminho se ilumina.

Ilya comeu mais um biscoito sem dar muita importância ao que o estrangeiro tentava lhe dizer.

– Sei pessoas de Durkheim não religiosas. Sem Criador, sem Deus, mas Criador continua. – Catermei gesticulou mostrando o ambiente – Toda parte ele está. Muito atribulado você.

– Verdade. Sabe por quê?

Catermei entrelaçou os dedos colocando as mãos sobre a mesa. Ilya confessou – Vou morrer logo e vou morrer atrás das grades.

O maltisseíta fez um som estranho exalando o ar – Está certo disto?

– Acho que sim. – os olhos de Ilya não encaravam o interlocutor. Olhava para a mesa com tampo sujo e para as migalhas de comida espalhadas.

– Morte não é fim. Morte começo. Permite eu fazer a você um benção?

O rapaz ergueu as sobrancelhas – Benção? Que é isso?

Catermei olhou-o com olhar de compaixão.

– Em meu país, Catermei sacerdote. Profissão de sacerdote prover benção para todos. Você necessitar benção, rapaz. Benção é ajuda, é iluminação. Não deseja ajuda?

Ilya deu com os ombros – Tudo bem. Pode me dar essa tal benção.

Catermei tirou um pote em forma de pastilha do bolso. Abriu a tampa passando no interior o dedo que tinha pontas gordas. Esticou os braços compridos por cima da mesa alcançando a testa do rapaz. Ilya sentiu o toque gelado de óleo sendo ungido em sua testa. O sacerdote pronunciou palavras em sua língua que soavam como um cântico.

– Muito bem, Criador abençoará, porém, preciso silenciar. Um pouco cada dia, compreende Duas Caras?

– Duas Caras?

– Sim, ontem dormiu tinha aparência mais velho. Hoje acordar aparência jovem.

Ilya deu-se conta, apenas agora, de que a loção do Sr. Xir havia perdido o efeito durante a noite. Deu-se conta de que qualquer um naquele salão poderia reconhecê-lo a qualquer momento. Instintivamente, Ilya cobriu o rosto. Parou por uns instantes para pensar. Sentiu algo dentro de si. Uma pausa naquela turbulência. Seria este o efeito da benção? Fechou os olhos e sua expressão ficou tranquila. "Hoje é o oitavo dia! Não há aulas!", veio a voz e o rosto de Marya em sua mente.

Abriu os olhos e viu que o maltisseíta lhe sorria, mas sem mostrar os dentes.

– Bem, obrigado, senhor. Parece que esta benção de fato me iluminou o caminho.

– Não benção, mas você e Criador. Dentro você, sempre o Criador.

O rapaz levantou-se, despediu-se e retornou ao quarto de dormir. Pegou suas coisas e abandonou a pousada. Vestiu o casacão azul de lã emprestado por Xir e enrolou um cachecol muito preto no pescoço e rosto até cobrir o nariz.

Em uma loja, comprou um gorro com cobertura de orelhas. Seguiu em direção ao bairro residencial onde morava Marya. No caminho viu uma banca de jornais e revistas e livros usados. Havia algumas poucas pessoas por ali, pensou que já que ia ver Marya, seria uma boa ideia levar um agrado.

– Droga! – ele hesitou a uns poucos passos da banca.

Estava sendo procurado, mas ainda assim, superou o frio no estômago e aproximou-se. Não demorou muito para escolher e pagou. A senhora demorou um pouco para retornar o troco e Ilya passou os olhos nas manchetes dos jornais. Não havia nada sobre ele nas primeiras páginas. Falava-se em na partida de três navios militares para Novaya Kassev. Temia-se um conflito contra Perz Quonzil.

Quando recebeu o troco, sai dali aliviado e apertou o passo, já pensando no que diria ao encontrar-se Marya.

Os Óculos Indesejados de Ilya GregorvichOnde as histórias ganham vida. Descobre agora