27 - Caverna do dragão

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Na segunda aproximação da usina, Ilya sentiu um pouco de fraqueza, mas seu corpo logo se ajustou, como que por instinto, para não ter todas as energias sugadas de uma vez.

Halle havia observado o movimento dos operários nas proximidades da subestação. Entrar nos vestiários não foi difícil, considerando sua malandragem e cara de pau. Halle foi ao toalete e Ilya ficou observando. Percebeu que muitos dos operários deixavam os armários abertos com seus pertences enquanto tomavam banho. Após esperar pela oportunidade correta, apoderou-se de dois uniformes que eles vestiram. Havia identificações bordadas nestes, como as da Sra. Kechko, da clínica em Dusseloris.

Trancaram suas coisas num armário e saíram. Halle carregou nos bolsos apenas o restante do supersoro e a pistola. Já Ilya calculou que poderiam se meter em problemas e não ter como pegar as coisas de volta, então, colocou seu precioso caderno de matemática dentro do macacão.

– Não acredito que acabamos de fazer isto. – resmungou Ilya.

– Temos pouco tempo, vamos depressa.

Foram para a entrada principal. Alguns operários trabalhavam com a descarga de grandes caixotes a partir da carroceria de um caminhão. Colocavam-nos sobre carrinhos de carga rebaixados. Sentiram um urina e fezes de animais. Estavam sendo descarregados milhares de jupp-lints. Halle achou que poderiam ajudar e sem se dirigir a ninguém começou a descarregar as caixas. Ilya decidiu que não devia ficar ali e caminhou usina adentro como se soubesse para onde ia. Halle amaldiçoou a precipitação de Ilya, mas foi impedido de segui-lo ao receber nos braços uma caixa, passada por outro operário.

Dentro da cúpula, a temperatura era mais elevada e o rapaz percebeu que o interior assemelhava-se a uma enorme fazenda. Havia pastos e até pequenos bosques nos quais manadas de criaturas manoativas, tais como hipogrifos de asas podadas, estavam a pastar. Acima destes, centenas de captadores manóticos eram suspensos por fios presos à superestrutura da cúpula. Viu que os operários realizavam atividades que seriam comuns de ver numa fazenda. Havia aqui e acolá celeiros, casas e alguns pequenos prédios. Uma miniatura de cidade e fazenda integradas. Lembrando-se do que havia visto através do SOGEP, Ilya calculou lugares prováveis para haver acesso ao subterrâneo. Notou que sob o centro da cúpula um reator recebia milhares de cabos e tubos vindos de toda extensão da cúpula. A mesma estrutura que vira no subterrâneo, porém, invertida. Concluiu que o núcleo devia ser partilhado. Devido às dimensões da caverna, entendeu que apenas duas construções da superfície tinham condições de abrigar entrada para a periferia da caverna. Em um dos prédios, havia muito movimento, um intenso entra e sai de pessoas. Já a outra era o contrário com apenas um guarda em frente à porta. Seria ali. Tinha passado por tanta coisa e isto o alimentava com confiança para avançar, contrariando sua natureza mais retraída.

Aproximou-se da entrada e foi interrogado pelo guarda – O que quer aqui?

– Trouxe uma mensagem urgente. Preciso entregá-la lá em baixo.

– Para quem é a mensagem?

– Não estou autorizado a dizer.

– Trouxe a permissão?

– Puxa vida, me esqueci! O senhor Wolchkin ficará furioso com o atraso...

– Senhor Wolchkin? – o sentinela estava impressionado.

Ilya retirou seu caderno de matemática de dentro do macacão e mostrou ao guarda. Este examinou aquele emaranhado de equações.

– São dados importantes... – Ilya lamentou-se – Acho que serei demitido! Meus pais vão me matar... Como pude ser tão estúpido e esquecer a permissão?

Apesar dos protocolos de segurança o guarda não conseguiu ver em Ilya uma ameaça. Tão pouco o guarda compreendia a dimensão do que realmente havia no subterrâneo.

– Vamos, rapaz, passe logo.

Ilya sorriu e agradeceu – Fico lhe devendo uma bebida, amigo!

Entrou no prédio sem crer no sucesso de sua artimanha. Lembrou-se de Marya zombando sobre ele poder trabalhar com teatro. Ela estaria errada? Logo, reconheceu o local, o cômodo no qual a gravação do SOGEP iniciava. Foi fácil encontrar o caminho. Desceu escadarias muito extensas, sentindo logo alguma fadiga e aquela sensação incômoda no peito. O horror tomou conta de si, pois seus ouvidos foram invadidos por gritos, gemidos e lamentos daquele misto de câmara de tortura e abatedouro. O cheiro desagradável veio em seguida. Cruzou com alguns funcionários. Pensou "como eles suportam trabalhar num lugar horrível assim?". O calor intenso deixou-o todo molhado de suor. Sentiu que suas energias poderiam se esvair a qualquer momento.

Cambaleou próximo a um dos laboratórios e um brilho multicor chamou sua atenção. Tubos despejavam em tonéis, gota a gota, líquido translúcido que parecia ser supersoro. Admirou-se e murmurou – Eles também produzem isto aqui?

Tropeçou em direção dos recipientes contendo soro parecido com o oferecido por Halle. Bebeu um pouco e logo recobrou sua energia. Conseguiria prosseguir. Carregou um pouco mais consigo e desceu infindáveis lances de escada até atingir a base da caverna.

Lá estava ele, o dragão. Acorrentado e envolvido por tubos que drenavam sua vitalidade lenta e continuamente. O grande dragão estava adormecido e seu corpo tinha centenas de agulhões espetados, ligados aos tubos. Ilya sentiu muita pena do bicho. Reparou nos funcionários que pareciam alheios ao ambiente. Ninguém havia lhe dirigido uma palavra ou mesmo atenção. Sentia-se quase invisível naquele ambiente. "Talvez estejam todos drogados", ponderou Ilya.

"É pior que isso...", o pensamento invadiu a mente do rapaz e soou como uma voz sofrida, mas poderosa, de timbre grave semelhante ao sinal dos grandes navios cargueiros que aportavam em Voln.

A voz continuou "Tiveram suas mentes subjugadas. São escravos."

– Escravos? – Ilya murmurou, fazendo contato visual com seu interlocutor, o dragão. Seus olhos pareciam com enfeites de vidro que seu tio usava como peso de papel. Eram como duas gemas avermelhadas que transmitiam forte melancolia. Reparou na focinheira cruel e nas grossas correntes que prendiam o pescoço, braços, pernas e cauda da criatura.

"Sim, escravos. Vejo que tu és o herdeiro de meu pedido de ajuda a Orgeila Bertonk. Sim, jovem Ilya Gregorvich, entendo que ele morreu e compreendo o que tu passastes e tudo que tens arriscado para ajudar-nos. Agradeço-te por isso."

– Qual o seu nome? – indagou sussurrando. Sabia que seria possível comunicar-se apenas pensando, mas era difícil. Sentia necessidade de falar baixinho para a conversa fazer sentido.

"Lavamiir, mas pode me chamar de Lava".

– Sr. Lava...

"Seria senhora Lava, Ilya, sou uma dragonesa".

– Oh, desculpe, você é o primeiro dragão, digo, dragonesa que conheço...

"Sei disso. Respondendo à tua pergunta: como alguém insignificante como tu poderias ajudar? Talvez... Apenas talvez... Tu precisas saber algo muito importante. Esta usina fere as leis de vosso povo. É produto de uma aliança entre um grupo desesperado de funcionários corruptos do Ministério da Energia e um grupo criminoso de Kassev chamado de Bahamute. Há leis para proteger seres manoativos como nós e leis que garantem o status de cidadão de Durkheim a qualquer elkin. No entanto, há dúzias deles aqui presos e sob tortura."

"Tu tens a prova de existência deste local. O que precisas fazer é encontrar um modo divulgar isto. Precisas romper a barreira da censura imposta por esta rede de corruptos. Poucos no governo sabem deste lugar. Apenas um pequeno grupo, mas que estão em posições privilegiadas."

– Quanto à minha doença... Estou piorando e temo não ter forças para dar cabo a esta missão.

"Não desanimes de todo quanto ao teu estado de saúde. A palavra dos doutores pode não ser derradeira. Talvez eu possa auxiliar-te, mas não daqui. E não fraca como estou. Preciso que me libertes e que tu sejas perseverante no teu propósito.

– Muito bem, Lava, farei o melhor que puder.

"Teu tempo é escasso. Agora tu deves ir".

Os Óculos Indesejados de Ilya GregorvichWhere stories live. Discover now