3 - O funeral de um estranho

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As recordações de Ilya o distraíram por tempo suficiente, fazendo a viagem passar num instante. Havia chegado à estação do Bom Gênio, ponto final daquela linha. Saindo da estação, Ilya avistou o cemitério no alto de uma colina. Verificou o horário no relógio da torre da estação. Ainda estava em tempo, mas o enterro seria logo mais. Subiu a colina a passos largos e, apesar do frio cortante no rosto, suava por debaixo das roupas.

A entrada do cemitério era um arco de mármore com estátuas dos quatros sábios Elkins, cabeças do movimento que expulsou os Wlegdars há muitos séculos. Elkins e Wlegdars não eram humanos, mas tinham formas semelhantes. Eram seres magros, de crânios protuberantes e mãos com apenas quatro dedos alongados.

Na medida em que avançava para o grande agrupamento de pessoas, sentia um forte frio na barriga. Estava ansioso quanto a encontrar a pessoa para quem iria devolver os óculos e o que diria. Mas, inconscientemente, o nervosismo o dominava, pois ali também era o local onde seus pais foram sepultados. Em instantes, Ilya sentiu-se como um peixe fora d'água. Não conhecia ninguém ali, tão pouco se sentia vestido para a ocasião.

Numa placa lia-se "Orgeila Vassilyvich Bertonk". Ilya procurou espaço entre as pessoas para penetrar na saleta na qual o corpo de Orgeila era vigiado. O caixão de madeira escura estava fechado. Ao seu lado, uma senhora idosa com um lenço vermelho sobre a cabeça apoiava uma das mãos sobre a madeira lustrosa do tampo. Sua expressão era de tristeza. Olhava para baixo e murmurava algo, possivelmente um mantra.

Ilya tomou coragem e interpelou-a.

Ela o examinou como se tentasse lembrar quem era aquele rapazote. Depois de um momento de pausa e de desistir de adivinhar quem ele era, retrucou – Sim?

– Meus pêsames pela perda do Sr. Bertonk.

– Obrigada.

– Eu vim para devolver isto. – Ilya ofereceu os óculos para a senhora. Ela aceitou com certa curiosidade.

Enquanto ela os examinava Ilya deu uma olhada a seu redor. A câmara tinha um piso escuro e lustroso iluminado pelo reflexo de fracas lâmpadas taumatônicas no lugar de velas de um par de grandes candelabros. Aquele cheiro forte de desinfetante incomodava um pouco.

– Do que se trata? – ela perguntou.

– Os óculos do Sr. Bertonk.

– Óculos de Orgeila? Como assim?

Antes que Ilya pudesse falar, teve que aguardar enquanto a senhora recebia condolências de pessoas do trabalho de Orgeila. Uma delas ficou olhando muito para os óculos fechados nas mãos da viúva. Ilya então pode retornar e explicou que o sobrenome dele estava gravado na parte interna da haste.

– Oh, é verdade, mas não me lembro destes óculos. Como se chama, rapaz?

– Ilya Gregorvich.

– Tome Ilya, não quero isto.

As orelhas do rapaz ficaram muito vermelhas de raiva, ou então, de vergonha. Todo o trabalho que teve, a consulta médica cancelada, e agora isto? Relutantemente, Ilya pegou os óculos de volta.

– De qualquer forma, – disse a senhora chorosa – obrigada pela atenção e pelo trabalho de vir até aqui.

– Por nada. – disse e virou-se. A surpresa foi chocante. Ilya deparou-se com um retrato exposto de Orgeila afixado na extremidade oposta da sala. Era um homem gordo, de fartas barbas e totalmente diferente do homem que havia visto morrer no dia anterior. Como se duvidasse de seus olhos, perguntou a um homem que estava diante de si.

– Com licença, senhor, mas aquele retrato é do Sr. Bertonk?

O homem fez uma careta de estranhamento e respondeu – Sim! Como não?

Os Óculos Indesejados de Ilya GregorvichOnde as histórias ganham vida. Descobre agora