5 - Broncas e memórias de broncas

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Ilya vestiu-se e olhou-se no espelho. De todos os hematomas e ferimentos, o que mais incomodava era o galo da queda. Passando a mão sobre este, vieram memórias de uma ocasião em que recebera uma pancada exatamente no mesmo local. Foi há muitos anos, numa daquelas chatíssimas aulas de história do Prof. Gig Kort.

Blam! O apagador acertou em cheio a testa de Ilya.

– Gregorvich! – chamou o professor Kort. – Preste atenção na minha aula! Trate de fechar esse seu caderninho de números e preste atenção em mim.

A molecada caiu na gargalhada.

– Fecha aí, Zero! – zombou Anton, o rapaz que estava com Marya na parada.

Outro completou – Zero à esquerda...

Os demais gargalharam. A resposta da Kort foi veloz, atirou outro apagador no engraçadinho. Tirou mais um do bolso e ameaçou – Tenho muitos mais, vocês sabem! Agora silêncio... De volta ao nosso assunto. – berrou – Gregorvich! Do que falávamos?

– Ah, da revolução?

– Revolução!? – o professor ficou vermelho e indignado.

Ilya deu com os ombros e sorriu amarelo.

– Esse foi assunto do mês passado, pastel! – disse uma menina assentada na primeira carteira – O professor falava de Rupert Aren.

– Obrigado, Srta. Trenov, mas perguntei isto ao Sr. Gregorvich. Menos um ponto.

A enxerida choramingou.

– Gregorvich! Não me abra mais seus cadernos de matemática nas aulas de história, compreendeu? – O professor gesticulou com o polegar e indicador, como se segurasse um grão de areia e completou – Você está por isto aqui para ser reprovado.

– Sim, senhor!

– Como dizia, Rupert Aren nasceu em Vetrocrav, em 1743. Não foi apenas um ilustre estudioso, mas sim alguém que mudou o mundo! Vejam as lâmpadas e a energia ígnea, a luz, o fogo que alimenta os fogões e o gelo que conserva nossos alimentos.

– Mas professor Kort, quem inventou a lâmpada não foi Ellenorv? – indagou a Srta. Trenov.

– Sim, claro. Mas a lâmpada, propulsão dos navios, automóveis e dirigíveis só foram construídas a partir dos princípios revelados ao mundo por Aren em seu livro: "O mana, os átomos e a vida", de 1762. E lembrem-se, Ellenorv era discípulo de Aren.

– Não seria exagero atribuir tanto ao trabalho de um homem? – retrucou Ilya.

– Talvez, mas é mister notar que Aren teve papel fundamental para rompermos o tradicionalismo das instituições e praticantes de magia. Ao quebrar o paradigma dos rituais e mergulhar no entendimento físico da magia e da matéria, conseguimos realmente domá-la. O que era um privilégio de poucos, tornou-se benefício alcançável por todos.

O professor falava de modo orgulhoso e apaixonado, seus olhos brilhando, como se falasse de um filho. – E tudo isto que conquistamos ainda é de difícil assimilação para os Elkin, aqueles que nos trouxeram e ensinaram a antiga tradição da magia.

– Ele nasceu e morreu antes da independência de Karisheim, não é, professor?

– Sim, muito bem observado, Srta. Trenov. E foi justamente por ser alimentada de recursos da indústria bélica, Skenn, que o principado de Karis teve poderio para confrontar a coroa, começando com a declaração de independência em 1829 e a guerra. Até que foi reconhecida em 1833.

Aquele dia havia sido especial para Ilya, não por causa da repreensão do Prof. Kort, ou mesmo por causa do assunto da aula, mas sim porque assim que aquela aula acabou, foi visitado pelo professor Svenka e recebeu o convite formal para deixar o colégio e ingressar precocemente como aluno no curso de matemática da Universidade de Voln. Ilya rememorou aquele dia enquanto seguia para o gabinete de seu orientador. Era justamente ele que estava agora diante de Ilya, de braços cruzados e com expressão muito séria. Suas bochechas grandes, arredondadas e flácidas, que pendiam como uns frutos secos, acentuavam a expressão de insatisfação e desapontamento. Os olhos verdes, agora apertados, escondiam-se recobertos pelos volumosos tufos de cabelo das sobrancelhas brancas. O manto cinzento de mestre estava um pouco mais amarrotado que o usual. Ilya temia que o professor voltasse a torcer suas orelhas a qualquer momento.

– Gregorvich, estou muito decepcionado com você!

– Desculpe-me, professor, não vai ocorrer novamente.

– O que não vai ocorrer novamente? Você faltar um dia inteiro de aulas? Envolver-se em brigas com seus colegas? Não seguir minhas orientações para a pesquisa? Teimar na prova de teoremas inúteis? Ou, ainda, faltar à sua monitoria depois de ter saído para um bar e encher a cabeça de álcool? Qual destas coisas não irá acontecer novamente?

Estava envergonhado e sem capacidade de responder. Deu olhada na prova matemática incompleta no quadro negro no fundo do gabinete. Em um instante resolveu tudo mentalmente, mas resolver não falar nada com o professor, ainda mais com ele irritado daquele jeito.

– Isto tudo é um assunto muito sério, meu jovem! Da mais alta importância. Veja o caso de seu tio... Sabia que o conselho universitário está discutindo a expulsão de seu tio de sua cadeira de pesquisador?

Ilya perdeu a cor do rosto. – Ora, não! Que história é essa, professor Svenka?

– Ouça, Ilya, sou amigo de seu tio há anos. Há um mês que ele está afastado, internado na clínica Pertior Rigorod, em Vetrocrav, sabia disto?

– Internado? Achei que titio estivesse fora a trabalho.

– Sim, sim. Foi tudo encoberto... Quem precisa de mais um escândalo em dias como estes? – Svenka esfregava as mãos para se livrar do pó de giz.

– Por favor, professor, me diga o que houve? – Ilya inclinou-se sobre a mesa, abalado.

Svenka deu um risinho débil – Sim, apesar de este assunto ser proibido, eu lhe direi, sabe por quê?

– Não.

– Porque me preocupo com você, rapaz. Você tem grande potencial e não deve seguir os passos de seu tio.

– Mas o que houve, afinal?

O professor se levantou e começou a juntar alguns papéis que abarrotavam sua mesa. Enquanto falava, separava alguns para dar para Ilya.

– Há cerca de dois meses, Ektova começou a agir de modo estranho. Seus assistentes foram os primeiros a notar. Mas, por uma ou duas semanas, nada muito sério ocorreu. Sabe, Ilya, nos mais de trinta anos em que trabalhei com seu tio, ele nunca foi de beber. E olha que para nós, Durks, beber um pouco não é nenhum crime. Você notou algo diferente? Quero dizer, percebeu que ele estava bebendo?

– Na verdade, não. Estive pouco tempo com ele neste último ano. Exceto pelas ocasiões em que me acompanhou nas minhas consultas médicas, o senhor sabe.

– Sei sim. O que me lembra... – Svenka levantou-se e torceu a orelha do aluno com força. Suas orelhas já estavam latejando e o rapaz fez uma careta, segurando-se para não reclamar, pois seria pior. – Isso é por faltar à sua consulta médica! Por acaso está querendo morrer, rapaz? Sabe da gravidade da sua enfermidade, não é mesmo?

– Sim, senhor. – o jovem esfregava a orelha quente.

– Pois então, assim como eu estou preocupado com você, seu tio também está. Ele que me perdoe em dizer essas coisas para você, rapaz, mas acho que as notícias da gravidade de sua doença e as chances de fatalidade foram demais para ele suportar. Sabe como é, você é como um filho para ele. E, como ele perdeu os filhos, penso que a ideia de perdê-lo possa ter sido demais para ele.

– Eu não sabia... Mas o que ele fez então?

– Como ficou evidente, seu tio começou a beber demais. E, um dia, quase incendiou todo laboratório de neurociências. Um de seus assistentes chegou a ficar ferido. Foi quando o conselho chamou as autoridades e ele foi removido para Vetrocrav.

Ilya sentiu-se o pior dos piores. Murchou todo olhando para baixo e remoendo as recentes notícias.

– Vamos, rapaz, quero que levante a cabeça e retome seu trabalho. Não há tempo a perder. Espero que toda essa confusão fique no passado e que tenha aprendido uma lição. O que me diz?

– Claro, senhor. – Ilya ergueu o olhar, ainda desolado – Desculpe aborrecê-lo tanto assim.

– Ótimo, agora, de volta ao trabalho! Quero tudo pronto na minha mesa até a semana que vem. – referia-se ao bolo de papéis que entregou a ele.

Os sentimentos do rapaz estavam confusos. Em parte estava aliviado, pois temia uma repreensão ou mesmo a perda de sua bolsa especial de estudos. Mas, por outro lado, sentiu grande peso sobre os ombros com as terríveis notícias que recebeu a respeito de seu tio.

Os Óculos Indesejados de Ilya GregorvichWhere stories live. Discover now