DOIS - Parte 1

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Eu já vim aqui antes. Com toda certeza.

Respiro fundo e me encosto no muro de pedra que marca o fim do terreno da hospedaria. Não sei se fico olhando para a casa, esperando meus clientes saírem, ou se continuo encarando a mata. Eu já vim aqui antes. Desde que cheguei na cidade, estou evitando vir aqui. O mais perto da mata que chego são as trilhas que vão para a praia e para a casa de Rafaela, uma amiga de Vanessa que mora afastada da cidade. Nem tinha reparado nisso antes, mas agora...

De que é que eu estou fugindo?

Não me lembrar de quando eu era mais nova nunca pareceu importante. Quer dizer, ninguém se lembra da maior parte de quando eram crianças, não é? Então eu só "perdi" alguns anos a mais. Não faz diferença. Não deveria fazer diferença, mas agora não consigo não achar que tem alguma coisa de errado nisso. Que eu deveria ter me importado antes. Questionado antes.

Questionado quem? Minha mãe? Se ela nunca falou nada, é porque não quer. Então perguntar não ia adiantar, de qualquer jeito.

— Se tiver mudado de ideia, eu posso avisar os pesquisadores.

Bato as costas com força no muro e olho para Nero. Ninguém devia conseguir andar sem fazer barulho assim.

— Precisa me matar do coração?

Ele ri e olha para trás antes de me encarar de novo.

— Não é minha culpa se você estava olhando para o nada.

Ugh. Ele não está errado. E se eu quero ser a guia de um grupo de pesquisadores nessa mata, preciso prestar mais atenção no que está acontecendo.

Eu sou louca de ter aceitado isso.

— Daiane? — Nero chama.

Respiro fundo. O que foi que ele perguntou mesmo?

— Não mudei de ideia.

— Então estar parada olhando para o portão como se quisesse fugir é só uma coincidência?

Oi?

— Eu estava olhando para o portão?

Não tenho nem certeza de para qual lado ele fica. Isso se Nero estiver falando do portão que dá para a rua, do outro lado do terreno. Porque tem o outro portão aqui, se é que posso chamar assim. Um arco no muro de pedra, que obviamente já foi um portão algum dia. E eu não acho que estava olhando para ele.

Nero respira fundo e para bem no arco, na parte que ainda está na sombra.

— Você vai estar segura na mata. Não precisa se preocupar. E se alguma coisa acontecer, é fácil achar o portão.

Olho para o arco. Fácil, diz ele. Depois de andar um pouco na mata isso aqui vai sumir.

— Sabe, o jeito que vocês continuam repetindo que eu vou estar segura não passa muita segurança...

Ele não me responde. Não que seja uma surpresa. Nero não é de falar tanto – o que é mais um motivo para ser estranho ele estar aqui fora comigo, agora. Mas apesar de também ser estranho como ele e Vanessa repetem que eu vou estar segura, não acho que me colocariam em uma cilada. Passei tempo demais na hospedaria para estar tão errada sobre eles.

Espero muito não estar errada, porque se estiver...

O único jeito de eu conseguir aceitar esse trabalho foi confiando em Vanessa e Nero, porque foram eles que rabiscaram um mapa da mata, marcando os lugares que parecem ser o que os pesquisadores querem. Eu só lembro de entrar na mata, mas não de nada específico, então seria inútil. Mas o mapa e as explicações deles... Eu quase consigo ver o caminho. Quase consigo me lembrar. Então preciso confiar neles.

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now