CINCO - Parte 2

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Está quente. Estranho. Eu acho que deveria estar frio. Hmm? Por quê?

Abro os olhos. Está claro, mas a luz é estranha. E estou olhando para uma parede de pedra que tenho certeza de que nunca vi antes. Oi? A última coisa que me lembro é do rio e da água gelada subindo atrás de mim...

Me sento e olho ao redor. A cama onde estou é só uma reentrância na pedra da parede, com um colchão não muito grosso e uma coberta feita de retalhos. Estreito os olhos e passo a mão pelo tecido. Eu odeio essa sensação de já ter visto isso antes. Odeio muito. E um pouco para a frente da cama tem uma cortina de algum tecido fino o suficiente para a luz do que acho que é uma fogueira passar, mas não o suficiente para eu ver o que está do outro lado.

Na verdade, onde eu estou parece ser um canto de uma caverna ou coisa assim. A parede de pedra é curva e irregular, mesmo que dê para ver os lugares onde alguém lixou. Quer dizer, dá para ver que a pedra foi alisada de algum jeito. E o teto. Ele continua, bem mais alto do que a cortina na minha frente. Não consigo nem imaginar o tamanho desse lugar. Caverna. Seja lá o que for.

Alguma coisa se move do outro lado da cortina, só uma silhueta mais escura perto do fogo.

— Você acordou.

É ele. Tenho certeza. Posso só ter ouvido uma frase dele, mas essa voz, esse tom um pouco sibilante... Não tem como confundir.

Me levanto. Tem um tapete de corda trançada na frente da cama e meus tênis estão encostados na parede. E secos. Estranho.

Paro no lugar. A água. Eu me lembro da água do rio subindo, como uma onda vindo na direção errada e me alcançando quando tentei sair da ponte.

Ugh. Nunca mais eu vou beber. De onde foi que eu arrumei uma ideia tão idiota assim? Queria pensar que uma garrafa de vodca não é o bastante para me fazer virar uma idiota completa, mas pelo visto...

Empurro a cortina para o lado e paro. É uma caverna e tem uma fogueira enorme no meio dela. Mas não consigo parar de encarar ele. O homem-cobra. Na luz do fogo, a pele dele parece mais clara, com um tom azulado... Não. Lilás. Um tom quase lilás que definitivamente não é humano, mesmo que a cauda enorme já seja ótimo aviso de que ele não é humano.

Ele se endireita. Se é que posso usar esse termo, porque o que acontece é que ele parece mais alto ainda – alguma coisa sobre quanto da sua cauda está na vertical. E a cauda – enorme, maior do que eu pensei que fosse pelo que eu tinha conseguido ver antes – está enrolada atrás dele, ao lado do fogo. Faz sentido. Cobras têm sangue frio ou coisa assim e ele realmente parecia mais frio que eu.

E eu estou parada feito uma retardada encarando ele, depois de provavelmente ter sido tirada do rio pela segunda vez.

— Obrigada — falo.

Ele continua me encarando por um instante e respira fundo de um jeito que preciso fazer esforço para não olhar para o seu peitoral definido. Foco.

— O que você estava pensando para ir para o rio assim, de noite?

Ei!

Estreito os olhos. Uma coisa é falar que fui irresponsável. Outra bem diferente é falar comigo nesse tom de voz, como se eu fosse uma idiota. Não que isso esteja errado, mas não dei esse direito para ele. Não mesmo.

Ele começa a vir na minha direção e para. Está achando o que, que eu vou fugir? Ou não. Engulo em seco. Não tinha reparado antes, mas ele está tenso e com os punhos fechados com tanta força que consigo ver onde sua pele está até mais clara.

— Se eu não estivesse por perto, se não tivesse visto o rio se levantando, o que acha que ia ter acontecido? Você podia ter morrido ali!

Dou um passo atrás. Isso não é grosseria gratuita. Isso é preocupação. Por quê? Ele não tem nenhum motivo para se importar. Ele nem me conhece.

— Eu não estava pensando — murmuro.

Ele solta o ar com força e vira as costas para mim, sem sair do lugar. Dessa vez seu cabelo está preso, mas vai até o meio das suas costas.

E não tenho que ficar encarando.

— É óbvio que não estava pensando.

Ah, não. Limites. Tudo tem limite e eu não vou ficar ouvindo isso sem falar nada, mesmo que ele tenha salvado minha vida. De novo. Até porque... O que foi que Rafaela falou? Ah, é.

— Na verdade, estava pensando sim. Estava pensando até demais, sabe? — Paro logo depois da cortina, encarando as costas dele. — Pensando nas coisas que já aconteceram na cidade, no que eu vi, no que eu não me lembro e em tudo o que Vanessa ou Rafaela poderiam ter me explicado se alguém não tivesse proibido elas de me contarem nada.

Resumindo, eu tinha surtado. Só isso. Ah, e estava bêbada, mas não vou acrescentar esse detalhe.

Ele abaixa a cabeça mas não fala nada.

Que seja.

Eu estava certa sobre ele, quando pensei que não ia me contar nada. Não importa se ele está agindo como se me conhecesse, se eu tenho essa impressão de alguma coisa familiar e se o fato de ele ser um homem-cobra nem me assusta, no fim das contas. Nem importa se ele me tirou do rio ou não. Se ele também vai ficar na turma do "pode pirar aí que não vou falar nada", não tenho nenhum motivo para ficar aqui.

E por que é que eu estava pensando em ficar aqui?

Minha mochila. Onde é que ela foi parar? Olho ao redor. Realmente estou em uma caverna, e obviamente é a casa dele. Os móveis são rústicos e a única iluminação é a fogueira, mas continua sendo uma casa. E minha mochila está em cima de uma mesinha encostada em uma das paredes. Ótimo.

Pego meus tênis e me sento na beirada da cama para calçá-los. Eu acho que consigo ver onde é a saída da caverna, porque tem um lado que tem uma luz diferente da fogueira. E, se tem luz, é porque já está claro.

Jogo a mochila nas costas de qualquer jeito e passo ao lado do homem-cobra sem nem olhar para o lado.

Talvez ele esteja certo. Talvez fosse melhor eu nunca ter vindo para cá, porque assim não teria percebido o quanto esqueci e não tentaria me lembrar. Não teria visto nada de diferente, não teria achado nada estranho.

E talvez seja mais fácil ir embora. Me convencer de que tudo foi só uma alucinação de bêbada ou coisa assim.

Voltar para casa, para ouvir os mesmos comentários de que sou uma garota mimada que nunca precisou se preocupar com nada na vida e não tem maturidade para ser considerada adulta. Mas é melhor ouvir esses comentários na minha cara do que ficar com essa sensação de que sou tão idiota que não podem nem me contar o que está acontecendo aqui.

Sim, é a saída aqui na frente, depois de um corredor estreito. Quer dizer, estreito se eu comparar com o tamanho da caverna em si.

Uma coisa gelada segura meu braço. Olho para baixo. É a ponta da cauda de cobra, enrolada no meu pulso.

— Onde você vai?

Precisa mesmo perguntar?

Olho para trás. Ele ainda está parado no mesmo lugar, me encarando.

— Embora. Não era isso que você queria?

Espero, mas ele não fala nada. Que seja, então.

Empurro a cauda dele para baixo, até soltar minha mão. Ela cai no chão com um som seco, mas ele continua me encarando em silêncio.

Viro as costas e saio da caverna.

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOUnde poveștirile trăiesc. Descoperă acum