CINCO - Parte 1

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Não sei se posso achar bom Vanessa e Rafaela terem confirmado que ele está na mata. Juro que não sei. Talvez realmente seja mais fácil esquecer. Ou tentar fingir que nada aconteceu porque não tem como ser real. Não que eu tenha alguma dúvida sobre isso, mas... É pior saber o que vi, saber que não foi a primeira vez que vi alguma coisa assim, se bobear nem a primeira vez que vi ele, e não entender.

Me estico na cama, encarando o teto. Que está rodando. Droga. Me sento de novo e apoio a cabeça nas mãos. Eu devia ter bebido menos. Bem menos, para ser honesta. Ou nem bebido. Isso. Mas não, tinha uma garrafa de vodca barata que comprei para comemorar ter conseguido ao menos ajeitar a casa. Então, se tinha bebida, era melhor beber.

Idiota.

Me jogo para trás e caio na cama de novo. Deixa o teto continuar rodando. Ficar sentada não vai adiantar nada.

Do mesmo jeito que ficar em casa não adiantou nada.

E beber ajudou menos ainda.

O que é que eu vou fazer? Não tem como fingir que nada aconteceu. Não mesmo.

Fecho os olhos. Quase consigo ver o rosto do homem de novo. Eu nunca vi ele... Eu acho. Mas tem alguma coisa de familiar. Ou talvez seja mais um caso de que eu vi ele, só que anos atrás. Em algum momento dessa bagunça da minha vida que não me lembro de nada.

E o fato de ele ser meio cobra... Não faz diferença. Simples assim. Ele não é humano – ponto. E não consigo me preocupar com isso. É estranho. Não é como se estivesse tentando não pensar nisso. É só um caso de que não importa. Não é nada demais. Mas deveria ser.

Talvez seja por causa dos sonhos. Porque sim, ele é o homem daquele sonho que estou tendo logo antes de me mudar para cá. Os detalhes podem não estar certos, mas é ele. Então talvez eu tenha me acostumado com a ideia de um homem-cobra bem antes...

Não. Eu nunca vi ele por inteiro no sonho. Sempre foi só uma figura no meio da névoa, meio escondida.

Aposto que ele saberia me responder isso tudo. Aposto qualquer coisa. Mas, levando em conta que das duas vezes que vi ele eu só apaguei do nada e acordei no outro dia, duvido que teria alguma resposta.

O rio. É isso. É por isso que eu queria tanto sair de perto do rio. Aconteceu alguma coisa lá quando eu era mais nova e foi alguma coisa marcante o suficiente para eu ainda ter alguma impressão de que me lembrava. E se só passando por lá eu tive essa impressão, se for para lá querendo prestar atenção nisso, talvez...

Me levanto da cama de uma vez e paro quando tudo roda. Péssima ideia. Calma. Muita calma. Devagar.

Minha mochila ainda está jogada no canto do quarto, que foi onde deixei quando cheguei em casa e apaguei. O que é que tinha nela? Deve ter uns lanches ainda. Deve não. Tenho certeza que tem alguma coisa de comer, porque foi a primeira coisa que separei para levar e acabei não precisando. Ótimo.

Calça jeans, uma blusa decente mas que não é nova, uma blusa de manga comprida por via das dúvidas, tênis, pronto. Eu já tinha tirado roupas sujas da mochila... Eu acho. Mas ela está leve e é isso que importa.

Eu vou descobrir o que é isso tudo por bem ou por mal.

Saio de casa e encaro a rua. Minha casa não é gigantesca que nem a de Vanessa, mas também é numa das partes da cidade que a mata não está longe. Quer dizer... Dou uma volta olhando ao redor. Okay. Não tem muita coisa da cidade que esteja realmente longe da mata.

E já está tarde, se eu fizer hora demais não vou conseguir chegar no rio antes de escurecer.

Atravesso a rua, passo entre duas casas do outro lado e entro na mata. Não estou nem perto do caminho que fiz com os pesquisadores, mas aquilo foi um zigue-zague maluco. Não quero isso agora. Só quero ir direto para o rio.

Droga. Lanterna. Tem uma lanterna na minha mochila, certeza.

Abro a mochila. Nada. Mas eu jurava...

Não importa. Ainda consigo ver o suficiente para ir andando e na pior das hipóteses posso usar o celular para iluminar o caminho. Acho que a bateria está carregada. Espero que esteja.

Não tem nenhuma trilha aqui, mas a sensação de que conheço esse lugar é tão forte que não tenho a menor dúvida de para onde estou indo. Quero chegar naquela árvore, a com os arranhões fundos, e ir de lá para o rio. Foi onde tive a sensação mais forte de quase me lembrar. Ou seja lá o que aquilo foi.

E foi onde eu vi ele pela primeira vez.

Não. Não foi lá. Foi depois do rio. Do outro lado. Por que é que pensei que foi perto daquela árvore?

Isso está dando um nó na minha cabeça. Ugh.

O rio. Já estou ouvindo o barulho da água. Mas... Estranho. Jurava que não era tão perto assim. Não que eu esteja reclamando. Não mesmo. É melhor assim. Quer dizer que estou chegando onde quero e ainda não anoiteceu.

Dou uma risada e paro. Minha voz está fazendo eco. Estranho.

Bom, o que aqui que não é estranho?

Passo pela clareira onde acampamos ontem. Pelo menos acho que é ela. A árvore com as marcas está ali, mas não tem nenhum sinal de que teve alguém aqui recentemente.

Paro ao lado da árvore e passo a mão pelas marcas. Aconteceu alguma coisa aqui. Tenho certeza. Só... Nada. Nem uma pista do que foi. Eu odeio isso.

Continuo até o rio. Dessa vez ele não está claro. A água está daquela cor que parece suja mas é só o normal. Terra, correnteza, isso tudo junto e dá nisso. Ótimo.

Encaro a água. Por que "ótimo"? Que diferença que isso faz? E tem uma diferença, porque não estou que nem da outra vez, louca para sair daqui o mais depressa que conseguir.

Eu só queria entender. De verdade. Só queria conseguir juntar todas essas impressões soltas na minha cabeça de um jeito que fizesse sentido.

Me sento na ponte, com os pés quase na água. Um arrepio me atravessa. A sensação de antes voltou. Eu não deveria estar aqui. Mas não vou sair – preciso me lembrar. Entender. Tem alguma coisa... Alguma coisa aconteceu aqui. Engulo em seco e minha respiração falha. Não. Está difícil respirar. E gelado. Muito gelado. É quase igual no outro dia, que eu caí na água...

Não. É pior.

Abro os olhos de uma vez. Está escuro. De noite.

De noite. E eu estou sozinha na mata.

Puta que pariu, o que foi que deu em mim para fazer isso?

Tento me levantar, mas alguma coisa me segura. Olho para baixo. Não. Eu estou vendo coisas. Tem um tentáculo feito de água segurando meu tornozelo. E eu não tinha percebido antes.

Puxo a perna. Nada. O tentáculo não me aperta – continuo não sentindo nada, nem frio, nem molhado. Mas a água do rio... Ela está clara.

E eu não deveria estar conseguindo ver o rio.

Tento puxar a perna de novo. Dessa vez a água escorre, gelada, um instante antes de subir de novo.

Corro – me arrasto, engatinho, não sei – mas a água é mais rápida que eu.

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOOn viuen les histories. Descobreix ara