DOIS - Parte 4

195 47 13
                                    

É claro que eles iam tentar medir a profundidade do rio. Óbvio. Três pesquisadores, depois do que eu falei? Não sei nem por que não imaginei que fossem fazer exatamente isso.

Pego minha caneca de chá e sento do outro lado da fogueira. Eles ainda estão discutindo, mas não quero prestar atenção. Nem quero que venham falar comigo agora. Eu avisei que era perigoso, e eles pegaram um galho para ir tentar ver a profundidade. Depois que o primeiro galho não foi o suficiente, arrumaram outro. Quando fui ver o que estavam fazendo, eles estavam tentando achar algum cipó flexível o suficiente para amarrarem ao redor de uma pedra e jogarem no rio.

Loucura. Tentativa criativa de suicídio. Já basta estarmos acendendo uma fogueira aqui – ao contrário do que eles acham, o fogo não vai servir para afastar nada de nós. Só é um aviso de que tem alguém aqui. Mas não tem outro jeito, porque assim que o sol se pôs, o frio veio de uma vez. Não estava tão ruim enquanto estávamos um pouco longe do rio, mas aqui do lado? Gelado. E se eu pudesse dormiria aqui fora do lado do fogo. Não que a fogueira vá ficar acesa depois que formos dormir.

Termino meu chá, enxugo a caneca com papel toalha e a guardo na sacola de coisas para lavar amanhã. Se o rio não estiver claro.

Pelo menos ninguém nem tentou dar qualquer desculpa sobre o que estavam fazendo nem ficaram insistindo para eu conversar com eles agora. Tá, eu posso estar exagerando, mas... Não. Não estou exagerando. Tenho certeza.

Me levanto, bato a mão na calça para tentar limpar um pouco disso aqui e vou para dentro da barraca. Melhor dormir. Não tenho nenhum motivo para ficar sentada ali fora com eles enquanto discutem por que o rio é do jeito que é. Eu avisei.

Me estico no saco de dormir. Está frio demais para eu pensar em trocar de roupa agora e tenho certeza que é por causa dele. O rio. Não é normal estar gelado assim num lugar tão perto da praia, mesmo dentro da mata. E se...

Não. Chega. Não tem como os meus três cabeças duras terem causado isso de alguma forma. Um rio não tem consciência. Não tenho nem que pensar numa coisa dessas.

Talvez eu tenha passado tempo demais jogando nos últimos meses. Talvez seja realmente melhor eu ficar longe de Lua Azul.

Ainda não dormi quando Clarisse vem para a barraca e se deita. Pelo silêncio, acho que os outros dois foram dormir também. Ótimo. Pelo menos ninguém teve a ideia genial de voltar para a beirada do rio de noite.

E eu não consigo dormir.

Me viro de um lado para o outro no saco de dormir, mas sempre tem alguma coisa me incomodando. Meu pé está numa posição estranha, ou então tem alguma coisa no chão machucando meu ombro e... Não dá. Só não dá.

Não sei quanto tempo faz desde que vim para cá, só sei que Clarisse já está roncando baixo e eu continuo virando de um lado para o outro. Droga.

Quer saber? Que se foda.

Saio do saco de dormir, pego uma blusa de frio, uma lanterna e saio da barraca. Aqui fora não parece estar tão frio mais, mas mesmo assim... Visto a blusa de frio depressa e acendo a lanterna antes de ir na direção da fogueira. Ugh. Não sei se acho bom ou ruim terem apagado tudo direitinho. Se tivesse algum resto de brasa aqui eu juro que ia sentar e esperar o sono aparecer. Mas do jeito que está...

Olho ao redor. Está tudo escuro e silencioso. Não que eu estivesse esperando outra coisa. Só queria alguma coisa, sei lá. Qualquer coisa para prestar atenção e ficar fazendo nada até conseguir dormir.

Não. Está silencioso demais. Deveria ter algum barulho. Sei lá. Grilos? Alguma coisa, não esse silêncio completo.

Dou um passo para trás. Alguma coisa se moveu. Tenho certeza. Está escuro demais para ver o que mas alguma coisa se moveu. Ali. No chão. Alguma coisa...

Aponto a lanterna para lá e dou mais um passo para trás. Droga. Droga. Está perto da minha barraca. E eu estou indo para longe dela. Por que é que fui ter essa ideia idiota de levantar no meio da noite?

Não tem nada no chão onde a luz da lanterna está batendo. Só folhas, aquele mato baixo normal, galhos... Nada que poderia ter se movido. Mas eu juro que vi alguma coisa.

Giro a lanterna devagar, fazendo um círculo ao redor da clareira. Não vou voltar para a barraca sabendo que tem alguma coisa aqui. Não mesmo. Não consigo. Mas...

A luz bate em alguma coisa grossa no chão, brilhando. Dou um pulo para trás. Não. É só um galho. Um galho meio úmido para refletir a luz assim. Só isso. Estou vendo coisas agora.

Só isso. Pronto. Não tem nada. Só estou imaginando coisas mesmo. Provavelmente uma brisa jogou alguma folha e eu achei que tinha visto movimento. Só isso.

Jogo a luz da lanterna ao redor mais uma vez. Acho que isso é meu sinal para voltar para a barraca, não é? Parar de show por causa da estranheza de estar na mata, da impressão de que devia me lembrar de alguma coisa e tudo mais.

A luz bate em um rosto. Um homem.

Eu sabia que tinha alguma coisa aqui.

Ele vem na minha direção.

Desligo a lanterna e corro. Não posso ficar aqui. Não posso. E a luz da lanterna... Tropeço em uma raiz meio levantada e me agarro no tronco de uma árvore para não cair. Não posso ligar a lanterna de novo. É a forma mais idiota de gritar "oi, estou aqui". Mais idiota do que sair correndo sem ver nada.

Respiro fundo e paro no lugar. Não. Estou entrando em pânico à toa. Não tem como ele me achar aqui. Não no escuro, se eu ficar quieta. Dá para ouvir o barulho de algo se movendo na mata – e agora o silêncio de antes faz sentido. Como é aquilo de que os animais ficam quietos quando tem um predador por perto?

Isso não é barulho de passos. Não mesmo. Parece alguma coisa se arrastando.

Me encosto no tronco da árvore, olhando ao redor. Está escuro demais para eu conseguir ver alguma coisa além de silhuetas. Não tem luar nenhum aqui, não sei se porque não tem lua esses dias ou se por causa das árvores. Só consigo ouvir o barulho do rio e o da coisa se arrastando.

Se eu ficar encostada na árvore, ele não vai me ver. Se só dá para ver silhuetas aqui, eu posso usar isso para me esconder. Não vai ter como ele perceber a diferença.

O som de arrastar continua chegando mais perto e eu consigo ver outra silhueta no meio das árvores. É um homem, sim, e está vindo na minha direção.

Ele não vai me achar. Não vai, não vai, não vai.

Prendo a respiração. Não tem ninguém aqui, vai embora. Vai para outro lado, me deixa... O quê? Voltar para a barraca? Dormir? Eu com certeza não vou dormir agora. De jeito nenhum.

Ele para. Perto demais. Vai embora. Só sai daqui. Por favor...

A silhueta continua se aproximando. Mais um pouco e não vai ter como ele não me achar, mas não tenho para onde ir. Ficar correndo não vai adiantar muita coisa.

Dou um passo para trás, ainda tentando ficar perto da árvore.

— Não...

Um arrepio me atravessa. Se ele está falando é porque me viu. Ou pelo menos tem uma boa ideia de onde eu estou.

Dou mais um passo para trás.

— Não, o...

Piso em falso e caio.

Não.

A água do rio está gelada. Respiro fundo, mas já estou debaixo d'água. Água no lugar de ar, queimando, e eu não sei onde é para cima ou para baixo. Não consigo ver nada e... Tem alguma coisa segurando meu pé. Chuto com força e acerto alguma coisa, mas ainda estou presa. Sendo puxada.

Se estou sendo puxada... Tento nadar na direção contrária. Para cima. Por favor, que isso seja para cima. Não consigo respirar, tudo está queimando por dentro e o que está me segurando não quer me soltar.

Chuto de novo e tenho a impressão de que ouvi uma risada. Mas não tem como estou dentro da água. Alucinações. É isso.

Alguma coisa segura meu braço e puxa.

Acabou.

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now