SETE - Parte 2

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— Por que será que eu estou com a impressão de que, esse tempo todo, você só estava esperando uma desculpa para aproveitar o café aqui sempre?

Olho de relance para Vanessa antes de abrir o armário onde as xícaras estão e pegar uma. Não vou nem responder. Quer dizer, eu não estava esperando uma desculpa. Não para valer. Mas não vou recusar uma oportunidade. São coisas diferentes.

E agora, pensando bem...

— Quem é que faz a comida aqui mesmo?

Vanessa ri e eu acho que são os pequenos rindo também – porque minha impressão é de muitas vozes rindo ao mesmo tempo, mesmo que o som não seja alto. E eu ouvi isso ontem também, depois de alguma coisa que eu falei.

— Algumas coisas eu faço. — Vanessa dá de ombros. — Gosto de mexer na cozinha. Mas os pequenos gostam mais e com certeza são melhores que eu.

Como é que é aquela história mesmo sobre não comer comida das fadas, ou vai ficar preso no mundo deles? Não lembro direito. Mas faz sentido dentro da coisa toda de "as histórias do nosso mundo são uma distorção do que veio dos véus". Porque se a comida da hospedaria quase sempre é feita pelos pequenos, então foram eles que me viciaram.

Bom que pelo menos vou ficar me sentindo menos inútil da próxima vez que for tentar cozinhar e não sair nada tão bom quanto o que como aqui.

— Eles já foram embora.

Dou um pulo na cadeira e olho para a porta que dá para o saguão. Como foi que Nero entrou aqui sem fazer nenhum ruído?

Vanessa ri e olha para mim. Nero sorri e aparece ao lado dela. Certo. Foi assim que ele entrou na cozinha. Okay. Nada demais. Ele só consegue se teleportar. Nem é alguma coisa tãããão estranha assim...

Nero me encara por um instante antes de puxar outro banco e se sentar. Estava esperando o quê? Que eu desse mais um grito? Porque tenho quase certeza que um gritinho escapou quando ele apareceu do nada na cozinha. Mas considerando o que já me contaram sobre os véus, alguém que consegue se teleportar está no lado normal das coisas agora.

— Eles quem? — Pergunto.

— Seus clientes — Vanessa fala. — A hospedaria é toda nossa por alguns dias.

Meus clientes? De onde veio isso?

Ah.

— Os pesquisadores? Achei que já tinham ido embora.

Vanessa balança a cabeça.

— Eles estavam "se organizando para a viagem" — Nero conta. — Pelo menos foi o que falaram.

Vanessa e eu reviramos os olhos. Seria mais fácil acreditar se tivessem falado que estavam exaustos depois de três dias andando sem parar ou coisa assim.

Aliás, agora que estou lembrando do que me falaram ontem...

— Será que eles vão voltar?

Vanessa suspira e dá de ombros.

— É provável. Os pequenos ouviram comentários deles sobre terem achado alguma coisa aqui que é diferente dos outros lugares.

E não sei por que não pensei que alguém ia estar vigiando eles, se suspeitavam que os pesquisadores sabiam sobre os véus.

— Você continua não achando nada de estranho nisso — Nero fala.

Dou de ombros. Não é tão simples assim.

Vanessa levanta as sobrancelhas. Ugh. Claro que ela vai querer que eu responda alguma coisa.

— É estranho. É esquisito. É bizarro pensar que isso tudo existe e está acontecendo. Mas ao mesmo tempo... — Dou de ombros de novo. — O mais esquisito é que no fim das contas isso não me incomoda. Devia, eu acho. Só que não faz diferença.

Nero olha para Vanessa e ela balança a cabeça. Tá. Não vou nem tentar entender.

— Provavelmente porque isso já era normal para você antes de se mudar daqui — ela fala.

Antes de apagarem minha memória, no caso. E é a mesma coisa que eu pensei, porque eu deveria estar surtando com isso tudo.

A cozinha esfria de repente e a porta que dá para o quintal bate. Pelo menos dessa vez teve algum barulho, só que não tem mais ninguém aqui.

— Relaxa, Sina. Ela já sabe — Vanessa fala.

E lá vamos nós de novo.

— Como é que ninguém me falou nada antes?

Encaro a mulher que falou. Mulher? Garota? Fada? Não sei. Só sei que num instante não tinha ninguém na cozinha e agora tem essa pessoa voando perto da porta.

Voando. Com asas prateadas que são da mesma cor do cabelo dela. E ela é pequena, do tamanho de uma criança humana, mas é óbvio que não é uma criança.

— Foi essa a cara que eu fiz quando te vi pela primeira vez? — Vanessa pergunta.

O quê?

A mulher voadora – Sina – ri e cruza os braços.

— Não. A sua parecia mais que você tinha bebido um pouco demais.

Vanessa estreita os olhos antes de rir.

Certo. Eu já tinha esquecido que Vanessa descobriu sobre isso tudo não faz tanto tempo assim. Nem parece, considerando como ela age como se os véus e os seres do outro lado fossem a coisa mais comum do mundo.

— Mas se contaram para Daiane, isso pelo menos explica Alessio mandando recado de que não vai vir aqui mais — Sina fala.

Oi? Ela sabe meu nome?

Claro que sabe. Idiota. Ela provavelmente estava na hospedaria esse tempo todo, só invisível ou algo assim. Que nem quando entrou na cozinha mas eu não vi nada.

— O quê? — Vanessa pergunta.

Sina dá uma volta no ar e a cozinha esfria por um instante antes de voltar para a temperatura normal.

— Eu encontrei com Alessio no caminho de volta. Ele pediu para avisar que se precisarem falar com ele, é para mandar recado. Ele não vai vir aqui. — Ela para flutuando logo acima da bancada e olha para mim antes de se virar para Vanessa. — Eu não tinha entendido o motivo, mas agora fez sentido.

Eu não vou me importar. Não vou. É exatamente o que eu estava pensando mais cedo: não importa se eu conheci Alessio quando era mais nova, eu não conheço a pessoa que ele virou. E o pouco que vi não foi lá muito animador. Então não tenho o menor motivo para me importar com isso. Na verdade, deveria estar até achando bom ele não querer vir aqui, porque quer dizer que tem menos chance de eu ter que lidar com a grosseria dele.

Então por que é que continuo sentindo como se alguém tivesse me dado uma facada pelas costas?

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora