TRÊS - Parte 1

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Encaro o mar. É tão estranho sair do meio da mata direto para a praia e ver o mar logo ali à frente. Sei lá, parece que está faltando alguma coisa, uma transição. Se bem que de acordo com o que Marcos falou, existe um tipo de transição e é exatamente por isso que quiseram parar aqui. A última parada. Amanhã cedo já começamos a voltar para a cidade... Não que isso vá ser uma coisa demorada. Se eles não insistirem em parar toda hora, dá para estar na hospedaria logo depois do almoço.

E isso é só mais uma das coisas estranhas nisso tudo. Três dias andando no meio do mato – tudo bem que dei várias voltas para ir nos lugares que eles precisavam – sendo que no fim das contas estamos muito perto de casa. Mas, ao mesmo tempo, parece que estou num lugar completamente diferente.

As barracas estão montadas em mais uma das várias clareiras que estão por toda parte. Até pensei na possibilidade de montar o acampamento aqui na praia, mas isso foi antes de lembrar que íamos estar na areia, porque essa cidade é cheia de coisas estranhas assim. Ou seja, sem estabilidade nenhuma, melhor ficar dentro da mata. Pelo menos estamos longe do rio.

Um arrepio me atravessa e não vou nem fingir que é frio. Pode até estar ventando um pouco, mas ainda está quente. Quanto o sol terminar de se por provavelmente vai esfriar um pouco, mas não tanto quanto ontem à noite.

Ontem à noite. Isso é mais estranho que qualquer coisa que já ouvi que aconteceu na cidade. Eu tenho certeza absoluta de que aquilo aconteceu – eu saindo da barraca e correndo, o homem me perseguindo e eu caindo no rio. Só não consigo entender o que veio depois. Como eu fui parar de volta na barraca, como se nada tivesse acontecido. Não faz sentido. Nem um pouco. É tão mais fácil pensar que foi só um sonho. Mas foi real demais. Não tem como não ter sido real.

E o homem. Eu não consegui prestar atenção nele. Não consigo nem me lembrar do rosto dele. Mesmo assim... Não sei. Agora que deu para pensar melhor no que aconteceu, não parece que ele queria fazer alguma coisa comigo. Aquele "não" logo antes de eu cair no rio... Não sei. Só isso. Não sei.

Cruzo os braços quando um vento mais frio sopra. Certo. Melhor voltar para o acampamento, mesmo que seja logo ali atrás. O sol está quase sumindo no horizonte e depois vai escurecer bem depressa. Não quero correr o risco de me perder na mata. De novo.

Eles acenderam uma fogueira, de novo. Não vou nem reclamar.

— Como que a praia está? — Marcos pergunta.

Dou de ombros.

— Deserta.

Obviamente.

— É sempre assim? — Clarisse pergunta. — No tempo que estamos aqui foi raro ver gente na praia.

Como é que eu vou saber? Estou na cidade faz só uns meses.

— Nem ideia. Quase não vim aqui.

— O que provavelmente já responde — Marcos fala. — Os moradores da cidade mesmo não devem vir tanto aqui.

Possível. No meu caso, foi mais porque estava preocupada demais tentando dar um jeito de não ter que voltar para a casa da minha mãe. Quase todas as vezes que vim perto da praia foi porque estava ajudando Rafaela com alguma coisa.

Robervan me passa um sanduíche e me sento no chão, perto da fogueira. Pensei que fossem fazer alguma coisa quente, já que se deram ao trabalho de fazer a fogueira e tudo mais, mas pelo visto a preguiça falou mais alto. Ou o cansaço. Não que eu esteja reclamando, de qualquer forma.

A fogueira.

Isso é loucura. Com certeza é loucura. Mas não tenho outro jeito de saber.

Pego mais um sanduíche e continuo comendo em silêncio, enquanto os três discutem sobre o que gravaram, fotografaram e recolheram hoje. Não consigo entender metade do que estão falando, de qualquer forma. As palavras fazem sentido separadas, mas as frases parecem outra língua. Não que isso seja uma surpresa. Não entendo nada sobre as áreas deles. Meu negócio é coisas que posso fazer.

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora