Capítulo 5 parte 2

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Erine comprou um apartamento em um prédio antigo, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Asia chegou à cidade estranhando tudo, estava acostumada à vida ao ar livre, ao mar, à brisa fresca com cheirinho bom, e a cidade repleta de prédios não a agradou.

No prédio em que Erine comprou seu apartamento morava Yeda Klein, uma senhora entre sessenta e setenta anos, que Erine conheceu durante a Segunda Guerra Mundial. Yeda era magra e pequena, algo em torno de um metro e cinquenta e cinco centímetros, e pintava seus cabelos de forma a mantê-los com a cor parecida com a que tinha quando jovem: um tom de loiro acinzentado. Todos os dias, Erine ia ao apartamento de Yeda, onde conversavam em uma língua que Asia não conhecia. De vez em quando, elas voltavam a falar em português e davam atenção para Asia, que estava aborrecidíssima com a mudança de ambiente. No prédio, não havia nenhuma criança, e a menina passou o primeiro mês odiando tudo aquilo.

Em dezembro, Erine concluiu que seria bom para a filha se fizessem uma viagem para a praia e passassem as férias lá, antes do início das aulas. Ela alugou uma casa em Ubatuba, litoral de São Paulo, e levou Yeda com elas.

Para Asia, o início da temporada na praia foi agradável, fez amizade com crianças da rua e se divertiu em um ambiente que lhe era bastante familiar.

Foram férias relativamente tranquilas, mas, no final de janeiro, Asia inventou uma excursão pela mata que havia próximo ao mar. Queria conseguir pedras bonitas para colocar no jardim da casa em que se hospedavam e convenceu as outras crianças a irem com ela. Seguiram por uma trilha que entrava na mata. Algumas crianças estavam assustadas e reclamando, mas sem deixar de seguir Asia. Eles haviam levado um saco para colocar as pedras e acabaram, por fim, se divertindo com essa novidade.

Na volta, escureceu muito rapidamente, estava quente e ouviam os ruídos de sapos e outros bichos da floresta. As crianças se viram sozinhas, no escuro, caminhando pela trilha que levava de volta para casa, e sentiram muito medo. Não era medo de alguma coisa específica, era medo do escuro, de que algo poderia estar à espreita aguardando para avançar sobre elas.

Asia não sentia medo, apenas estava atenta a tudo a sua volta, percebia os bichos da mata, sabia onde estavam e que não ofereciam perigo. Quando se encontrava em um estado apreensivo, era capaz de perceber a natureza à sua volta de forma ampla, como se fosse capaz de se integrar a ela: não se assustava com facilidade e sentia algum prazer em poder dirigir o grupo que a seguia.

Logo após a curva, quando desciam pela trilha, Asia viu algo que a deixou maravilhada. Foi a segunda vez em sua vida que viu algo tão bonito. Diante deles havia vaga-lumes, vários vaga-lumes, milhares deles. Formavam uma cortina de pontos luminosos à frente. Uma cortina flutuante que cintilava luzes brilhantes: havia uma ondulação suspensa no ar com pontos luminosos que viajavam em uma rota caótica e perfeita.

Eles nunca tinham visto algo tão bonito. Asia se adiantou correndo na frente de todos. Corria entre os vaga-lumes girando, girando e olhando para cima, para o topo das árvores salpicadas das pequenas luzes. As outras crianças seguiram Asia fazendo o mesmo movimento. Aquela visão maravilhosa havia afastado o medo que os afligia e retardou ainda mais o retorno para casa.

Eles ficaram bastante tempo correndo e girando entre os vaga-lumes até lembrarem que teriam de voltar. Fizeram o resto do caminho apressados, e quando finalmente chegaram encontraram seus pais desesperados. Erine também estava lá: acalmando os pais das crianças e esperando sua filha voltar.

Retornaram no dia seguinte para São Paulo, e Asia passou o resto das férias se divertindo com a mãe, enquanto preparava seu material escolar para o início das aulas.

Asia estava perfeitamente acostumada com Yeda, que vivia lhe contando as histórias de sua infância, na Polônia, e de pessoas que conheceu ao longo dos anos de sua vida. Falava um pouco sobre a Segunda Grande Guerra e de como a mãe de Erine foi corajosa por ajudar toda a sua família, escondendo-os dentro de sua casa. Tanto Erine quanto a avó de Asia correram grandes riscos diante dos perigos que existiam, na época, ao abrigar a família de Yeda.

Nesse novo período, Erine começou a vestir-se como antes, com vestidos e sapatos com saltos altos, elegante como sempre, e começou a fazer algo inédito: viajar, deixando Asia com Yeda. Passava alguns dias fora e quando voltava estava alegre e animada, parecia mais feliz. A convivência com Yeda também ajudou muito, porque era alguém em quem confiava e podia ser ela mesma.

Este foi o ano em que Erine procurou ter as maiores conversas com Asia sobre o que ela era. Explicou como deveria se comportar e que não deveria se envolver tanto com as outras crianças; como não chamar a atenção para seus reflexos rápidos e evitar se colocar em evidência, levando outros a segui-la em aventuras que não a assustavam, mas que poderiam lhe trazer problemas. Insistiu na importância de não deixar que os humanos percebessem que ela era diferente:

- Cuidado com suas reações. Você terá reflexos muito rápidos, terá que ter sempre consciência deles. Você viverá muitos anos, e quando for adulta, envelhecerá mais lentamente, de forma diferente dos humanos. Será capaz de fazer coisas que eles não fazem. - Erine ia passando essas informações para Asia aos poucos e repetidas vezes, para que a filha não esquecesse.

O convívio com pessoas comuns era limitado. Asia não ia a muitas festas nem ia à casa de colegas de escola; incidentes involuntários deveriam ser evitados e certa distância deveria ser mantida. Mas, diante do descontentamento da filha por seu isolamento, Erine a deixou participar das comemorações natalinas do final de ano no colégio, o que deixou Asia mais feliz e sentindo-se menos solitária, enquanto cantava no coral da escola usando um vestido de tafetá de seda azul marinho, meias brancas e um sapatinho de verniz preto.

Yeda mudou-se para o apartamento delas, no início do ano seguinte, e acompanhou os dizeres de Erine para a filha, reforçando-os sempre que preciso. Era extremamente atenciosa com Asia e deixava transparecer a alegria que aquela menina sorridente trazia para sua vida.

Erine passou a ser mais enfática com Asia em relação ao convívio com outras crianças:

- Asia, você não é humana, você é diferente das outras crianças. Precisa tomar cuidado, está bem? Conviva com seus amigos de escola, mas não se envolva muito. Fique sempre com Yeda, é só nela que deve confiar; até chegar a hora de encontrar outros como nós.

- Quando, mamãe?

- Você saberá querida, confie em suas intuições.

Em abril, numa manhã de domingo, Erine levou Asia para passear a pé pelo bairro em que viviam. Havia uma névoa suave suspensa no ar e os raios de sol passavam pela fina neblina, em feixes direcionados pelos prédios, iluminando a névoa aveludada. Asia caminhava de mãos dadas com a mãe, feliz por usar seu vestido cor-de-rosa florido e seus sapatinhos novos.

Erine parou em frente à entrada de uma estreita rua sem saída e entrou nela, com Asia. Enquanto caminhavam, elas podiam ouvir uma música que tocava em algum apartamento, na redondeza. Era Rachmaninoff, o primeiro movimento do concerto n. 2. O som chegava aos ouvidos de Asia com extrema clareza, enquanto seus olhos acompanhavam o estranho caminho que sua mãe estava seguindo. Asia ergueu seu rosto para o alto e observou os longos feixes de luz que escapavam pelo vão entre os prédios, visíveis graças à suave neblina. Erine parou antes do final da rua e disse quase que para si mesma:

- É aqui! Tenho certeza, vai ser aqui.

Erine calou-se. Movia o rosto, olhando em torno do beco, mas Asia não lhe ouviu ou sequer prestou atenção, pois tentava descobrir de onde vinha a música que, junto com a neblina, escapava por entre os prédios.

- Asia, preste atenção! - disse Erine inclinando-se e segurando a filha pelos ombros. - Um dia, você encontrará um rapaz. Ele seguirá contigo o teu destino. Você saberá quando o vir. Não saia do Bom Retiro, fique com Yeda até encontrá-lo. Aí, então, deverá seguir seu caminho... Siga sua intuição. Faça suas escolhas, compreende Asia? É você que decide a direção que dará a sua vida. Mas precisa encontrá-lo, primeiro..., o rapaz - Erine observava a filha com ar sério e esperançoso.

- Sim...

- É aqui que vai encontra-lo. - Erine, que segurava a mão de Asia, olhou para trás, para a entrada do beco, enquanto passava a outra mão no rostinho da filha, acariciando-o.

Nemtsi e Selvagens - As almas cativasWhere stories live. Discover now