Capítulo 40

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***

      O tempo estava agradável neste final de tarde. Soprava uma brisa suave e fria, indicando que a temperatura à noite iria cair, e o sol ainda incidia fracamente por trás da neblina dispersa que chegava tímida.

      Asia desceu sozinha. Apoiou o pé vagarosamente em cada degrau da escada sentindo-se um pouco desgastada por tudo o que acabara de ouvir: "O que eu sou? Eu sou eu! Como alguém pode determinar a minha essência? Talvez seja um fato inquestionável? Por que nunca desconfiei? Por que mamãe nunca disse nada? Ela me guiou para os braços de Andrey, será por isso? Por que ele é como eu? E ela também é?", interrogava-se enquanto descia a escada. "Todos aqueles sonhos estranhos. Eu me via em meio a tantos Selvagens. Eu me via no lugar de uma deles. Será por isso que eu tive aqueles sonhos? Posso me identificar com eles e roubar suas lembranças? Pobre fada, elas foram cruéis com ela e Muriel não a ajudou."

      Não se prendeu a esses pensamentos e logo passou a recordar-se de seu casamento há quase dois anos, de como tudo se passou de forma tão rápida e de toda a oposição que Andrey enfrentou por ter se casado com ela. Recordou-se de que Rainer a deteve por instantes antes que prosseguisse com a cerimônia. "Rainer sabia!", concluiu ela. "É claro que sabia, é irmão de Volker. Sei que ele quis dizer algo, mas não foi capaz de me contar, não se oporia a Andrey, que o ajudou tanto."

      Ao longo de todo o tempo em que conviveu com eles, Asia havia se condicionado a não recriminar Rainer em nada, aprendeu a ser tolerante com ele, já que havia sofrido tanto durante a guerra, mas, nesse momento, em que lembrava que ele não teve coragem de preveni-la, uma pontinha de desgosto, como se tivesse sido atraiçoada, recaía sobre ele.

      Em seguida, passou a questionar a seriedade daquela situação: "Mas o que quer dizer tudo isso, afinal? Qual o problema com esse casamento? Por que Reinis e Volker são contra? Não consigo entender, prender-se a uma promessa que não se quebra nem com a morte? Não terei liberdade longe dele, é isso? Reinis e Daina pareciam bem, Lars e Slauka também são felizes, Lars viaja tanto, qual é o problema, então?". Asia pensou intensamente a esse respeito, mas à medida que os minutos passavam e o tempo afastava as palavras de Andrey, a seriedade que ele impôs ao assunto se dissipava dentro dela e só restou em Asia a queixa por ele não ter contado tudo desde o início.

      No final da escada, pôde ver através da porta de vidro que dava acesso à varanda que Vladímir se encontrava sozinho. Asia dirigiu-se para lá, tinha alguma intenção de abordar Vladímir com perguntas a respeito de tudo o que ouviu, mas ao se colocar ao seu lado apoiando também as mãos no parapeito da varanda, permaneceu em silêncio. Olhou para os morros adiante com parcos raios de sol incidindo em seu rosto e ouviu a voz de Vladímir comentando:

      - Vejo que Andrey contou tudo a você, não foi?

      Asia virou o rosto para a esquerda e o observou. Seus cabelos escuros, um pouco grisalhos, estavam escovados para trás e escorriam sobre os ombros, e a barba malhada de branco, mais comprida do que normalmente ele costumava manter, escondia um pouco seu sorriso discreto. Apesar de tudo o que a perturbava, a curiosidade a respeito de como Vladímir conseguia obter essas informações a instigava:

      - Como consegue fazer isso? Como consegue descobrir o que pensamos?

      - O que você sente. - corrigiu Vladímir com um sorriso quase meigo estampado no rosto, - as fortes emoções permitem que eu sinta e veja o que acontece com alguém.

      Vladímir silenciou-se por instantes e depois prosseguiu com um comentário inesperado e fora do contexto:

      - Ela sobreviveu àquela agressão. - olhou para Asia sorrindo. - A fada. - observou Asia se surpreender com seu comentário. - Você andou pensando muito nela estes dias. Devo dizer que concordo que ela seja comparada a uma fada! Era realmente bela e suave. - Vladímir mantinha um sorriso meigo. - Quando regressou dos combates, ele ficou furioso com o que Úrsula e as outras mulheres fizeram com ela, como você já sabe. - baixou um pouco o rosto, ergueu as sobrancelhas franzindo a testa. - Ele entrou no grande salão brandindo a espada diante delas e desferindo golpes contra os objetos que alcançava como forma de impor respeito às suas escolhas, para que Úrsula não fizesse mais nada contra ela. Depois, ele mandou fazer um diadema de ouro e pedras preciosas e deu a ela para adornar sua cabeça e seus cabelos curtos, dizendo que logo estariam longos novamente. Ele a amava muito, mandou chamar um padre e casou-se com ela na capela do castelo, indo contra todas as normas que existiam entre eles. Desafiou a todos.

Nemtsi e Selvagens - As almas cativasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora