capítulo 23

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Capítulo 23

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      Durante o calmo retorno, Asia adormeceu. Dormiu por cerca de vinte minutos, período em que retornou àquele mundo insensato, perigoso e deslocado de seu tempo. Mas, a esse ponto, em que entrava no terceiro destes sonhos tão diversos dos que costumava ter, Asia começava a se familiarizar com a dinâmica do processo: não era ela que estava realmente ali, estava vivendo a vida de alguém.

      Encontrava-se sentada sobre o que parecia ser um banco ou uma cadeira comprida, de estofado duro e revestida por tecido. Seu longo vestido tinha, dessa vez, uma tonalidade verde-musgo, era de seda estampada, justo, mas confortável em seu corpo esguio. Ela olhava para baixo, enquanto tocava com a ponta dos dedos as cordas de um instrumento pousado sobre suas pernas. Era um instrumento de madeira com forma quase triangular e cordas em sua extensão. Achou surpreendente que soubesse tocá-lo, já que nunca havia estudado música, e encantou-se com o fato.

      Havia uma grande lareira acesa um pouco mais adiante e à sua direita, única fonte de calor naquele ambiente frio e úmido. Ela usava a claridade trêmula das chamas para ver o que estava tocando, já que a sala era mal iluminada, havendo apenas uma pequena janela distante, no canto esquerdo do recinto. A pouca claridade vinda dessa janela parecia indicar um dia nublado, escuro e provavelmente chuvoso, o que justificava a presença deles naquela sala e naquele momento do dia.

      Mais próxima à parede, mas não muito distante da lareira, havia uma moça de longos cabelos claros, que Asia notou pelo canto dos olhos sem parar de tocar seu instrumento. Ergueu os olhos podendo avaliar a sala em que se encontrava. Não era tão grande quanto o amplo salão do outro sonho, mas o teto era alto. Havia tapeçarias decorando as paredes próximas à porta, um tapete rústico de lã forrando o chão de pedra, e bem à sua frente se encontrava um homem sentado sobre uma espécie de cadeira de madeira coberta por uma pele felpuda. Ele tinha o rosto voltado para a porta, de maneira que Asia só podia ver seus cabelos castanhos, que escorriam lisos até a altura dos ombros. Vestia uma túnica de seda castanha trabalhada e bordada, sobre o que parecia ser um gibão de linho branco, ambos longos até os joelhos e cingidos por um cinto de couro. Usava um tipo de calça de lã preta e sapatos de couro.

      Quando aquele homem virou o rosto para as chamas da lareira e ficou de perfil, Asia pôde reconhecê-lo: "O homem que me feriu, no salão, com a espada! Ele atacou todas aquelas mulheres, ele é Selvagem!" Ela baixou o rosto para o instrumento que tocava e ficou um pouco apreensiva com a presença e com a proximidade dele.

      Do seu lado esquerdo, vinha um som que, desde o início, incomodava-a, atrapalhava a concentração que dedicava ao fascinante instrumento. Olhou na direção do som e pôde perceber, por trás de um cortinado preso a duas colunas arqueadas, uma senhora idosa trabalhando em algo que Asia pensou ser um tear. Não olhou para ela por muito tempo, voltou o rosto novamente para o homem à sua frente.

      Sentado naquela cadeira rústica e vestindo roupas de tecido refinado, ele não parecia tão grande e assustador como da primeira vez em que o viu. Naquelas circunstâncias, sem cota de malha e sem armas, aquele Selvagem parecia apenas um homem comum, que pertencia à uma alta classe social de sua época. Não possuía mais a fisionomia contraída e furiosa que viu nele quando a feriu, estava tranquilo observando as chamas da lareira, enquanto a ouvia tocar. Seu perfil era bem feito com nariz aquilino e barba bem aparada, até os cabelos pareciam mais limpos e o rosto menos pálido.

      Ela continuou a observá-lo atentamente enquanto tocava, e viu quando seu rosto se desviou das chamas e seus olhos azuis se voltaram para a mulher sentada próxima da parede. Asia também olhou para ela: seu vestido branco perolado e bordado de dourado estava parcialmente encoberto pelo longo cabelo loiro que descia um pouco ondulado, como uma cascata suave, e se espalhava sobre sua saia e o tamborete em que estava sentada. Assim que percebeu a atenção de Asia, a moça virou o rosto e pousou seus grandes olhos negros sobre ela "A fada!", pensou Asia de imediato, lembrando-se da história que ouviu entre os muros do castelo do primeiro sonho. "É como foi descrita, e ele a trouxe para cá!". Observou a aparência da moça. Pelo que se lembrava dos estudos sobre a Idade Média, e nisso pensou em séc. XI ou XII, os cabelos longos da fada representavam que ela era uma mulher livre de nascença, e usados soltos e descobertos indicavam que ainda era solteira. Ela tinha aspecto dócil, o rosto era delicado e a pele muito clara realçava os olhos escuros. Sua constituição magra e não muito alta, somada aos longos cabelos claros e vestes vaporosas, davam a ela um aspecto frágil e etéreo, que lhe atribuía a comparação a uma fada.

Nemtsi e Selvagens - As almas cativasWhere stories live. Discover now